quinta-feira, 28 de julho de 2016

Humanização da poesia



A vida é feita de ações. Claro, o desejável é que estas venham sempre acompanhadas da devida reflexão. Todavia, se formos confrontados entre o agir e o refletir, a opção tem que ser, sempre, a primeira: a ação, mesmo que estejamos sujeitos a erros. Temos que ser ousados. Precisamos deixar para trás o porto seguro, que não raro é uma desculpa para nada fazer, e explorar todas as possibilidades que a vida oferece.

Devemos sonhar, tentar, ousar e descobrir. Quem não agir dessa forma, certamente se arrependerá um dia. Mas, então... poderá ser tarde, muito tarde para recuperar o tempo perdido. O que ouvimos, lemos e testemunhamos no cotidiano tende a ferir nossa sensibilidade e impedir que vejamos o lado belo, nobre e sublime da vida.

Alguns se revoltam de tal sorte que chegam a culpar Deus pelo que de mal acontece. É um tremendo erro de avaliação. Devemos criar nossas próprias circunstâncias, à revelia do que nos cerca. Para isso é que fomos dotados de livre-arbítrio. Não se conformar, porém, não implica, só, em se revoltar, mas em agir, para transformar a realidade para melhor.

A forma de ação do artista, notadamente do poeta, é a sua obra. Trata-se de maneira válida e poderosa não somente de denúncia das mazelas sociais, mas, sobretudo, de cobrança de providências a quem de direito. Muitos torcem o nariz diante da chamada “arte engajada”. Acham que ao poeta compete, somente, descrever o sublime e o belo. Que é tarefa do jornalista tratar das distorções e aberrações políticas e sociais que caracterizam o mundo.

Entendo, todavia, que a arte e, principalmente a poesia, se trata de uma arma magnífica, posto que nem sempre eficaz, de denúncia de injustiças e misérias, em especial das que envolvam os humildes, os marginalizados, os oprimidos, as vítimas do vil apartheid social, aqueles que não têm visibilidade, voz e nem vez. O sociólogo Rodrigo de Carvalho denomina essa forma de ação de “humanização da poesia”, que “transforma a carne e o osso em versos”.

No seu ensaio “Walt Whitman: o poeta camarada”, observa: “Sem deixar os sentimentos de lado, (os poetas rebeldes do século XIX) foram buscar a realidade em suas voltas, retratar, a partir da poesia, as dificuldades do povo. O proletariado em franca ascensão se transformou na grande esperança da mudança do mundo em polvorosa”.

Contudo, entre os pensamentos, sentimentos e emoções que temos e sua expressão há um abismo tão grande quanto o diâmetro da Via Láctea. Palavras são frágeis, fragílimas, precárias para expressar a grandeza e a intensidade do que pensamos e sentimos. Atos, nesses casos, são mais eficazes, mas dependem de interpretações alheias, que quase nunca são corretas e justas.

Há pessoas que têm o dom da palavra e conseguem manifestar, posto que de forma tosca, pálidos “reflexos” do que sentem e pensam. A maioria, porém, frustra-se diante da impotência de se exprimir de forma inteligível e sem ambigüidades. Por isso, omite-se. A omissão, porém, é a maior das imoralidades, a máxima das covardias. Compete aos talentosos persistir e persistir e persistir em sua faina para modificar o mundo para melhor. Utopia? Sem dúvida! Mas deve ser a bandeira que empolgue quem aspire a ostentar com honra o título de “homem”, no seu sentido mais grandioso e verdadeiro.

O poeta tem a capacidade de antever o futuro, não raro com maior nitidez e precisão do que o profeta. Foi o que fizeram, por exemplo, Arthur Rimbaud, Walt Whitman, Guillaume Apolinaire, Antonin Artaud, Federico Garcia Llorca, Wladimir Mayakowski, William Burroughs, Jack Kerouac e Allen Ginsberg, entre tantos e tantos e tantos outros. Mudaram o mundo? Não! Mas não se omitiram. Tornaram-se arautos das mudanças, algumas das quais (pouquíssimas) aconteceram e outras tantas estão à espera ainda de acontecer (de preferência por vias pacíficas, mas que tudo indica ocorrerão, um dia, por meios traumáticos).

Allen Ginsberg nos legou precioso texto em que justifica sua postura e a de seus companheiros da chamada “geração beat”, de rebeldia face ao sistema, notadamente das chamadas sociedades de Primeiro Mundo. O cerne da sua obra é o livro “How!”, lançado em 1956, baseado em poema do mesmo nome (considerado obsceno e pornográfico). Escreve o poeta rebelde: “Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa”.

E arremata, com essas fortes palavras, que sensibilizam até os mais empedernidos e insensíveis dos leitores: “Que esfinge de cimento e alumínio arrombou seus crânios e devorou seus cérebros e imaginação? Moloch (referência a um deus que se alimenta de sacrifícios humanos)! Solidão! Sujeira! Fealdade! Latas de lixo e dólares inatingíveis! Crianças berrando sob as escadarias! Garotos soluçando nos exércitos! Velhos chorando nos parques!”.    

Atribui-se o exercício da imaginação, que é nobre (raiz de todas as artes e ciências) aos poetas, mas encarados de forma pejorativa. E, por extensão, aos ficcionistas, que "inventam" histórias que nunca aconteceram, mas com tanta verossimilhança, que são como se fossem fatos. Trata-se de um talento. É um dom. Representa uma virtude, que só pode ser desenvolvida (ou melhorada) pelo constante exercício.

Os pseudo-racionalistas, atados ao seu feroz materialismo, consideram que dar asas à imaginação não se trate de atitude científica, prática, construtiva. "É coisa de desocupado", afirmam, do alto de sua arrogância (ou ignorância). Estão enganados. Tais pessoas são dignas de piedade por desconhecerem o verdadeiro sentido da solidariedade, da justiça, da piedade e principalmente da beleza. Esta, observe-se, pode existir (e existe) nas coisas e lugares mais horrendos e tétricos. Basta que se saiba colher esse lírio de absoluta pureza no mais podre e infecto dos pântanos: o coração humano. E nisto os poetas são exímios!


Boa leitura!

O Editor.

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