sexta-feira, 12 de agosto de 2011



Memórias de um idealista


O poeta alemão Johan Wolfgang Göethe escreveu que "o importante é ter na vida um alto e definitivo ideal com aptidão e perseverança suficiente para consegui-lo". Objetivos elevados a maioria tem. No entanto, parte considerável das pessoas não conta com talento suficiente para tornar o sonho concreto, mesmo que parcialmente. Outros, embora talentosos, não sabem perseverar. Perdem-se pelo caminho, vencidos pelos obstáculos.

Este não é o caso, porém, do paraibano Celso Furtado, nascido na cidade de Pombal, em 1921, ao qual não faltaram nem aptidão e muito menos perseverança para atingir seus mais elevados ideais. E abundaram os obstáculos.

Guindado à Academia Brasileira de Letras em agosto de 1997, é, hoje um dos brasileiros mais conhecidos e reconhecidos no mundo. Aliás, sua longa carreira transcorreu, por força das circunstâncias (como o golpe militar de 1964 que o levou para o exílio e seu estágio na Comissão Econômica para a América Latina, Cepal, da qual é praticamente cofundador), a maior parte no Exterior.

Em fevereiro de 1997 foi criado, pela Academia de Ciências do Terceiro Mundo, com sede em Trieste, o Prêmio Celso Furtado, conferido a cada dois anos ao melhor trabalho de um cientista do Terceiro Mundo no campo da economia política.

É um reconhecimento mais do que justo a um homem que dedicou a maior parte da vida ao estudo do fenômeno do subdesenvolvimento e, sobretudo, à busca de caminhos para a sua superação. Toda a sua trajetória, como economista, professor, administrador e ministro da Cultura no governo do presidente José Sarney foi nesse sentido.

A editora Paz e Terra lançou em 1997, em três tomos, "Celso Furtado --- Obra Autobiográfica", onde o autor relata sua longa experiência nos cargos e países pelos quais passou, o que se constitui, mais do que uma obra memorialística, num precioso documento de toda uma época na América Latina.

A apresentação da coleção é de Francisco Iglésias, que destaca: "Esses textos têm alto valor como depoimentos para a história administrativa e política, e também para a da ‘inteligentsia’ patrícia. Ademais, valem, para caracterizar com rigor, uma carreira que foi sempre eficiente e lúcida, em compreensão do regional e do nacional, nos planos teórico e prático --- coisa bastante rara na perspectiva brasileira".

O leitor desavisado pode achar que se trata de uma autobiografia convencional, em que se narram fatos estritamente pessoais. Esta, no entanto, resvala mais para o histórico, do que para o biográfico.

Iglésias esclarece: “O memorialismo de Celso Furtado é um marco para melhor compreensão da vida nacional em todos os seus aspectos e aumenta o patrimônio cultural do País neste fim de século em que ele teve relevante papel".

A "Obra Autobiográfica" --- com prefácio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, com o qual conviveu por um breve período durante o exílio de ambos no Chile e seu admirador --- está dividida em três tomos, perfazendo mais de mil páginas, escritas em um estilo claro e fluente, sem o uso, mesmo quando se refere aos mais complexos conceitos econômicos, do "economês".

O primeiro volume divide-se em duas partes: "Contos da vida expedicionária" e "Fantasia organizada". Na primeira, revela seus dotes literários --- que aliás lhe valeram a eleição para a Academia Brasileira de Letras.

São histórias escritas em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial, em que narra, através de personagens reais (com nomes mudados), a participação brasileira no conflito, nos campos da Itália.

Na introdução, Celso Furtado esclarece: "Os fatos narrados nestes contos são substancialmente verdadeiros. Mas porque são traços gerais, não pertencem a ninguém. Muitos nos encontraremos aí; entretanto, não nos faltará a certeza de que as experiências gerais couberam a todos nós".

Na segunda parte desse primeiro volume, "A Fantasia Organizada", narra as peripécias para a criação da Cepal e, sobretudo, para a sua consolidação, ameaçada que estava a entidade de ser desfeita por interferência dos Estados Unidos. Ressalta, nos textos, sua profunda admiração e respeito intelectual pelo economista argentino Raul Prebish, com o qual estabeleceu sólida amizade.

O tomo II também se divide em duas partes: "Aventuras de um economista brasileiro" (texto escrito em Paris em março de 1972, a pedido da Unesco, para um número comemorativo da publicação "International Social Sciences Journal" e "A fantasia desfeita".

Nesta última, relata as demarches que levaram à criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), a qual comandou até que o golpe de 1964 o levasse a partir para o exílio. Traça um perfil bastante realista da região em fins dos anos 50 e início dos 60, no governo do presidente Juscelino Kubitschek.

Detalha o declínio de autoridade do presidente João Goulart, a criação das Ligas Camponesas, o cenário para o golpe de 1964 e a deposição do governador Miguel Arraes.

Finalmente, o tomo III também se divide em duas partes: "Entre inconformismo e reformismo" (texto escrito por solicitação do Banco Mundial para a obra sobre os pioneiros do desenvolvimento em 1987) e "Os ares do mundo", onde relata suas andanças por países como a França, os Estados Unidos, a Venezuela, etc. e seus contatos com personalidades econômicas, políticas, literárias etc.

Trata-se de obra imperdível para quem pretenda conhecer detalhes da história recente do País e sobre (e escrita por) um intelectual reconhecido no plano mundial, por sua intensa atuação em vários órgãos das Nações Unidas, com visão internacional de economia, política e sociologia, mas sem perder a identidade brasileira e sobretudo as raízes nordestinas. Não sei se foi publicada uma outra edição. Caso não tenha sido, vocês, provavelmente, a encontrarão em algum sebo. Vale a pena ler.

Boa leitura.

O Editor.

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