domingo, 28 de agosto de 2011



Questão de identificação

O
amor, nas variadas formas e intensidades com que se apresenta, é, sem nenhuma dúvida, a experiência maior, mais marcante e inesquecível de quem o experimentou algum dia ou tem a ventura de ainda vivê-lo intensamente, até o derradeiro instante da vida. Mesmo o que acaba frustrado, fica gravado, a ferro e fogo, na memória e na alma, à revelia de quem se frustrou com ele, com as lembranças, todavia, “adoçadas” pelo tempo, que dilui o veneno da frustração.
Por incrível que pareça, quem e o que nos fez sofrer é recordado com saudade e veneração. Claro que não saímos por aí apregoando algo tão íntimo e tão nosso. Daí o amor ser o tema preferencial e recorrente de praticamente todos os escritores, de todos os tempos. E eles encontram sempre ângulos novos, interessantes e originais para abordar.
Embora as histórias pareçam se repetir, na verdade nunca se repetem. São sempre originais e únicas. Têm personagens e enredos muito diferentes. Mais marcante uma novela, um conto ou um romance (não importa) de amor se tornam quando guardam identidade com nossas experiências pessoais. Quando personagens ou circunstâncias, ou ambos, nos retratam, e descrevem o que, de fato, vivemos, mesmo que apenas por ligeira aproximação.
Identifico-me, em particular, com um romance épico, desses de ficarem marcados na memória para sempre, dos tais que lemos, relemos e voltamos a reler vezes sem fim, com a mesma emoção e mais, com idêntica empolgação. Refiro-me a “O amor nos tempos do cólera”, de Gabriel Garcia Marquez, escritor conhecido, intimamente, como Gabo.
Chamo-o assim, com toda essa intimidade como se o conhecesse pessoalmente. Claro que não tive esse privilégio. Mas é como se o tivesse, tantas foram minhas leituras e releituras de sua magnífica obra (tão magnífica, que lhe valeu o Nobel de Literatura), como “Cem anos de solidão”, “O outono do patriarca”, “Os funerais da mamãe grande”, “O enterro do diabo”, “Relato de um náufrago”, “A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada” e uma meia dúzia de outros.
Identifico-me profundamente com o relato de “O amor nos tempos do cólera” por uma razão que, por mais que tente, não consigo explicar racionalmente. Seu personagem central, por exemplo, que viveu uma experiência afetiva remotamente parecida com a minha, Florentino Ariza, uma espécie de anti-herói, que só na última linha do livro identificamos como herói de fato, não se parece em nada comigo. Somos, fisicamente, rigorosamente diferentes. Ou, forçando a barra, diametralmente opostos.
O que nos identifica é a paixão. Mais do que ela, é a fidelidade devotada a ela. A dele, Florentino Ariza, pela esquiva Firmina Daza. A minha... pela mulher que me acompanha há décadas, mãe dos meus quatro filhos e avó dos meus dois netos. Há, claro, uma diferença fundamental sobre a nossa forma de amar e o tempo transcorrido para o sonhado “happy end” (que, em ambos os casos, ocorreu).
Florentino Ariza persistiu por cinqüenta e três anos, sete meses e onze dias (“com as respectivas noites”, como Gabo acentua), para saber-se correspondido. Tive mais sorte. Despendi sete anos, um mês e vinte e oito dias para ter igual sucesso em minha teimosa busca pela “cara metade”.
Nós dois – o personagem e eu – tivemos que nos contentar, por muito tempo (põe muito nisso!), com bilhetes apaixonados, cartas de péssima literatura mas de intensa e febril paixão, olhares furtivos e outras tantas loucuras de amor, para expressar à amada nosso sentimento e demonstrar-lhe nossa incorruptível fidelidade. Em ambos os casos, o obstáculo era idêntico: a oposição das respectivas famílias das nossas musas. Eram obstáculos aparentemente intransponíveis à concretização dos nossos delírios de paixão. Ambos os transpusemos.
Tive, é verdade, mais sorte do que Florentino Ariza. Após sete anos, um mês e vinte e oito dias, consegui vencer a resistência familiar e obter o consentimento para “viver para sempre”, até “que a morte nos separe”, com a mulher que minha intuição concluiu que era a que me fora destinada. Por quem? Sei lá!
Mas Florentino Ariza, despendendo quase oito vezes mais tempo do que eu para obter o mesmo resultado, também viu compensadas sua fidelidade e sua constância. No seu caso isso ocorreu, apenas, quando ele e Firmina Daza estavam em provecta idade, em que eram, ambos, anciãos, e ela há tempos viúva, certamente com lembranças de outros braços e outros beijos. No meu, felizmente, isso não acontece. Tive (e tenho) a ventura de usufruir do amor em toda a sua plenitude e glória a partir da minha completa maturidade, física, mental e afetiva até este início de declínio das minhas energias e vitalidade.
Todavia, os sofrimentos, as frustrações, as esperanças seguidas de desespero e de novas esperanças e de outros tantos desesperos, por mais de meio século, descritos com a perícia de um escritor genial, como Gabo, de Florentino Ariza, me são sumamente familiares. E como são! O amor... ah, o amor! É, sem tirar e nem pôr, o que tão bem o caracterizou a escritora Marguerite Grepon: “Uma enfermidade sem a qual ninguém passa bem”. E da qual, aduzo, intimamente, nos recusamos a nos curar.
O poeta romano Virgílio, impotente para se livrar dele, amaldiçoou-o. Não em nome próprio, é verdade (não chegou a tal atrevimento), mas colocando a maldição na boca de um personagem da sua imortal epopéia “Eneida” (Livro IV), que diz, num assomo de ira e de desalento: “Maldito amor, a que não obrigas os corações mortais!”.
Às imprecações, queixas e maldições, prefiro a ponderação sábia e segura de um especialista na alma e no comportamento humanos, o psicanalista Erich Fromm, que sentenciou, em seu livro “Arte de amar”: “O amor é a única resposta sadia e satisfatória para o problema da existência humana”. E não é?! Florentino Ariza (ou melhor, Gabriel Garcia Marquez) que o diga.

Boa leitura.

O Editor.




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Um comentário:

  1. Hoje também estive às voltas com o amor e seus exageros. Gostei da sua análise e destaco:
    “Uma enfermidade sem a qual ninguém passa bem”. E da qual, aduzo, intimamente, nos recusamos a nos curar.

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