terça-feira, 30 de agosto de 2011







Prismas e aparências

* Por Fausto Brignol

Com florzinhas nas lapelas, os senadores saíram da sua casa oficial. Foram recebidos por centenas de estranhas pessoas que não paravam de se beijar. Havia homens que pareciam mulheres e mulheres que pareciam homens. Todos pareciam ser alguma coisa que não eram, mas que desejariam ser. Pareciam manequins. E não paravam de se beijar. Os lábios já estavam roxos, mas não de frio.
Os senadores e senadoras foram cercados e ovacionados com gritos histéricos dos homens que pareciam mulheres e com urros atordoantes das mulheres que pareciam homens. Os lábios dos seres, aos poucos, voltaram às cores normais, mas somente o tempo suficiente para gritarem histericamente e urrarem grotescamente quando da saída dos senadores. Do outro lado da calçada, mas cercados por um cordão de isolamento e por policiais que pareciam ser policiais – alguns pareciam homens de verdade, outros pareciam mulheres de verdade – centenas de pessoas que pareciam pessoas de verdade e não manequins, gritavam com vozes que pareciam vozes humanas, palavras de ordem que variavam entre “Vendidos!” e “Vendidas!”. Porque os senadores eram, supostamente, dos dois primeiros sexos que formaram a raça humana.
Supostamente. Ouvia-se buzinaços nas ruas, mas ninguém sabia se eram de vaia ou de ovação. Tudo se confundia, conforme o planejado. Súbito, alguns senadores dos que pareciam homens foram cercados pelos homens que pareciam mulheres e algumas das senadoras que pareciam mulheres foram cercadas pelas mulheres que pareciam homens e, apesar dos seus protestos iniciais, também foram beijados e beijadas, ou beijadas e beijados, fogosamente. Beijos que correspondiam a votos e, aos poucos, os escolhidos deixaram-se beijar e abraçar e acariciar e...
Do outro lado, na outra calçada, supostos homens policiais e supostas mulheres policiais começavam a preparar as bombas de gás lacrimogêneo e as balas de borracha contra a multidão que ameaçava avançar. Os buzinaços aumentavam. Parecia até que o Brasil inteiro acordava, embora houvesse futebol em todos os estádios. A multidão revezava-se entre rezas em altos brados e gritos de fúria. Os senadores que não tinham sido seqüestrados aos beijos pelos estranhos e alegres seres humanos que pareciam, fingiam que nada estava acontecendo, com aquelas caras de sonsos que os caracterizam e tentavam sair rapidamente de entre os seus acariciadores eleitores. Seus seguranças, que supostamente era homens, chamavam helicópteros para resgatá-los - mesmo os(as) que estavam nus ou nuas e assediados ou assediadas de todos os lados por beijos e sexos e coisas e tais.
Supostos homens e supostas mulheres jornalistas tudo filmavam e reportavam à sua maneira ou conforme o roteiro especificado ou de acordo com as suas preferências sexuais, mas sempre havia um(uma) âncora que repetia para não esquecerem o politicamente correto. E tudo era filmado, exceto as cenas burlescas de repto e de rapto e os senadores eram descritos como heróis que a pátria aclama e ama por terem aprovado uma lei que protegia e aspergia uma classe especial de pessoas sensuais, sensoriais, sensíveis e sensitivas, que agora estavam acima dos demais seres que não eram tão sensuais ou tão sensíveis assim, ou o eram à sua maneira que, de agora em diante, deveria ser considerada errada.
A multidão do outro lado da rua urrava. Os seres que pareciam gargalhavam, ou pareciam gargalhar. Súbito, o cordão de isolamento foi rompido. Pedras, balas e bombas foram jogadas, de ambos os lados – e ambos os lados não eram ambos, porque existiam diversos lados – e já se trocavam os primeiros socos e empurrões e palavras não escritas na Bíblia eram proferidas aos gritos e raivosamente e mulheres que pareciam homens, fortes e destemidas, formaram a linha de frente dos Mais Sensíveis. Junto a elas ou eles, homens vestidos de mulheres, mas sensivelmente musculosos, começaram a esbordoar os que brandiam bíblias – em legítima defesa ou em fero ataque – e repeliram a agressão dos que estavam na frente da multidão urrante e foram ouvidos gritos de “Cuidado com a Gaystapo!” e muitos foram feridos e posteriormente presos pelos policiais que pareciam realmente ser policiais, embora surgissem dúvidas, e a voz de prisão para todos e cada um dos que formavam a multidão que era Contra Os Mais Sensíveis era dada por dez seres que pareciam seres alados, vestidos com coloridas togas que pareciam asas e muito foi o gemer e o chorar.
O Brasil estremecia sexualmente. Orgasmos múltiplos aconteciam a todo instante nos mais diversos recantos deste país continente. Mesmo os que estavam nos estádios e torciam pelos seus coloridos times de futebol, ao saberem da notícia dividiram-se e começaram a brigar enquanto os jogadores faziam a dança do trenzinho. Templos eram fechados por ordem dos cumpridores da Nova Lei da Sensibilidade e os fiéis recolhiam-se aos esgotos e cloacas públicas, que acreditavam catacumbas. Os que não conseguiam se esconder a tempo eram obrigados a prestar o Juramento Sensível e a provar a sua sensibilidade no ato.
Coloridos do Brasil inteiro se uniam em passeatas magníficas, ao lado dos deputados que por eles tudo faziam e dos senadores que tentavam esconder a sua senilidade com gestos sensíveis. O Exército estava nas ruas para prevenir novos ataques dos que eram Contra os Mais Sensíveis. A Esquadrilha da Fumaça fazia revoluteios no ar. Navios coloridos da Marinha ostentavam bandeirolas e lançavam vistosos fogos de artifício que podiam ser vistos nas alegres praias do país. A Nova Lei da Sensibilidade era pregada em majestosos Templos Sensoriais para multidões embevecidas com a sua nova liberdade dos cinco sentidos.
Faziam-se festas e um Carnaval fora de época era anunciado. Tudo parecia muito alegre. Tudo se confundia, conforme o planejado. E a confusão tornava todos confusamente felizes.
Depois de algum tempo – talvez meses, talvez anos – quando os fulgores da alegria geral já não eram tão fulgurantes e a alegria geral não parecia geral, e quando os assustados moradores dos esgotos que apelidaram de catacumbas, animaram-se a sair, aos poucos, e não foram agredidos imediatamente, mas apenas olhados com alguma animosidade, formaram-se, em nome da Democracia das Cores, pequenos grupos de obsoletos heteros, que somente foram aceitos porque podiam proliferar e o Estado necessitava de novos atores e novos soldados. E desses grupos surgiu um movimento que foi denominado Movimento da Proliferação, ao qual foi dado o direito de manifestar-se publicamente e, inclusive, fazer passeatas que reivindicavam direitos iguais aos Coloridos.
Os políticos, que continuavam políticos, apesar de Coloridos e dividindo-se no Congresso apenas pelas diversas cores e matizes, perceberam que surgia uma nova força social que proliferaria e traria votos. Logo, os Prolíficos começaram a queixar-se de agressões e até assassinatos, de perseguições pelos Coloridos Ortodoxos e os políticos, aos poucos, foram acolhendo as suas reivindicações.
Chegou o dia em que uma nova lei seria votada no Senado, depois de ter sido aprovada pela Câmara, que daria aos Prolíficos os mesmos direitos que os Coloridos, e até alguns a mais. Uma lei que defenderia os Prolíficos do que eles chamavam de crescente heterofobia no país. Os Coloridos Ortodoxos reagiram e manifestaram-se contra aquela nova lei.
No dia da votação, os Coloridos Ortodoxos colocaram-se na calçada oposta à do Senado, enquanto os senadores votavam. Mal perceberam quando foram cercados por um cordão de isolamento e por policiais que pareciam Prolíficos de farda, que começavam a preparar as bombas de gás lacrimogêneo e as balas de borracha. Ouvia-se buzinaços nas ruas.

• Jornalista e escritor

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