No silêncio da noite, um violino
* Por Rubem Costa
Menestrel solitário de quimeras toca em surdina, singular, divino, velha canção saudosa de outras eras
É lugar comum, mas vou repetir porque traz em si a essência da emoção e a cristalização de sentimento que se sublima no tempo e se aninha na alma com a marca da contradição — a doce presença da ausência.
Parece um paradoxo que a lógica rejeita — mas foi assim que se estratificou na língua portuguesa a sensação dolente de afeto que recebeu o nome de saudade —, mistério semântico incrustado no interior do homem como um canto de ternura — mística de uma gente e magia de palavra que, por isso mesmo, não encontra sinônimo perfeito em nenhum outro idioma.
Nessa dialética, representação em conflito — que revela o presente em diálogo com o pretérito — reside um milagre, a ressurreição do bem querer que desperta, na distância da idade, ainda que em fugaz instante, o supremo sentido da felicidade — o encontro do ser com seus anseios.
Sussurrantes, como risca de pólvora, as lembranças falam baixinho à emoção que, catalisada pelo tempo imóvel (aquele que guardamos intacto na memória) explode generosa na mente, despertando o calor da afeição, a amplitude do amor e a grandeza da vida. É a magia da evocação que provoca a agitação interior do ser e o faz sorrir ou chorar diante da lembrança corporificada que chega de repente e toma de assalto o espírito. A saudade e um nume. Sem avisar, nem sequer bater à porta, vai entrando, vai falando e — sem ninguém lhe perguntar — vai dizendo de uma idade que passou, de um mundo que imergiu, da era de encanto que ficou guardada na memória.
É assim que, no limite elástico da imaginação, a magia da presença se refugia perene na arca da existência. Remonta à criação do universo. Poder de enlevo, a saudade vem de eras ignotas e se perde no infinito, mas não foi concebida para ser simples objeto de divagação semântica. Somatória de emoções, explosão de beatitude, surgiu com o mundo, na hora mesma em que o primeiro casal foi expulso do paraíso. O drama de Adão que, privado sem remédio do Éden, aprendeu a suspirar pelos instantes de paz em um jardim a que jamais voltaria.
E essa aspiração de encanto se eternizou: o reencontro do ser com a alegria enjaulada. Todavia, reflexo do sonho, a recordação não surgiu para ser explicada. Não é exterior. É patrimônio interior que clama para ser revivido. Emanação de um mundo que já não é, anseia pelo encanto que a vida escondeu. Algemado pela existência, o homem se extasia em abrir a caixa do tempo e libertar o enlevo que está no fundo: um menino que não cresceu e continua jogando bola. Ou uma menina, que já é avó e permanece brincando de roda.
Pois foi isso aconteceu quando, dias atrás, em minha última crônica, pensando em mim, dialogava com você, falando de nós. — Lembra-se? — Eu queria comprar tudo que estava na canastra da saudade.
Porque temos a ânsia da eternidade, falava em negociar o saldo do baú. Proposta tentadora que muita gente aceitou e aderiu, libertando a raspo do tacho das recordações.
Vou-lhe contar como aconteceu.
Logo de manhãzinha — de Bicas, que fica perto de Mar de Espanha, na divisa de Minas com “ridijaneiro” (assim mesmo, como escreveu) — Aloísio Amadeu me acorda com uma preciosa carta que, pela falta de espaço, assim resumo: — O que você escreveu era o que estava preso no meu peito, eu queria dizer, mas não sabia como. E conclui a emoção: e bicas correram dos meus olhos. — De Serra Negra, Nilza Camargo Saragiotto comunga: — Confesso que voltei no tempo. E como você diz, somente leitor muito jovem poderia desdenhar desses “recuerdos” os quais realmente estão dentro de nós e conosco vão a toda parte.
De Campinas, fala Maria Nívea Pinto: — Também quero comprar tudo aquilo. Quero comprar a capacidade de sonhar e acreditar. Veio de Lúcia Ineia Fernandes esta mensagem: — Me lembrei muito de minha infância e adolescência. Muitas pessoas deveriam ler esta crônica, pois só querem comprar coisas para a matéria.
Zulmira Viana Ribeiro me intima: — Compra, mas não deixes a prateleira das lembranças vazias, pois atrás de ti, estarei recolhendo o que restou, pois a saudade é também minha. Da Alemanha, vem a mensagem de Gislene que me cumprimentando, brinca carinhosamente com o marido, lascando uma pergunta — “por que o Ricardo não é também um pouco poeta, heim?”.
O acadêmico Expedito Ramalho de Alencar, ilustre presidente do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico, assim me honra: — Embalado nas horas mortas e inertes tempos, deletei-me na merencória saudade; Ana me felicita com aplauso e Alcides Acosta, imenso artista, alma e corpo da Abal, manda uma mensagem comovente: — Como exprimir o estado de enlevo diante do seu extraordinário poema desta manhã na folha do nosso Correio Popular?
Agradecendo as comoventes manifestações, impõe-se, entretanto, uma observação genérica para lembrar que, na hora da revivência com o pretérito, não somos nós que voltamos ao passado. É o passado que vem a nosso encontro.
Para compreender essa inversão sutil de gesto e tempo, não é preciso, entanto, refletir. Basta ouvir um violino a tocar, na solidão da noite, uma esquecida canção de outras eras. Talvez um tango, um samba ou a lânguida valsa do primeiro beijo. Descobrirá que a emoção fala, o coração freme e os olhos choram. Enlevo da alma! E o ser se reencontra, à beira do caminho, consigo mesmo.
• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
* Por Rubem Costa
Menestrel solitário de quimeras toca em surdina, singular, divino, velha canção saudosa de outras eras
É lugar comum, mas vou repetir porque traz em si a essência da emoção e a cristalização de sentimento que se sublima no tempo e se aninha na alma com a marca da contradição — a doce presença da ausência.
Parece um paradoxo que a lógica rejeita — mas foi assim que se estratificou na língua portuguesa a sensação dolente de afeto que recebeu o nome de saudade —, mistério semântico incrustado no interior do homem como um canto de ternura — mística de uma gente e magia de palavra que, por isso mesmo, não encontra sinônimo perfeito em nenhum outro idioma.
Nessa dialética, representação em conflito — que revela o presente em diálogo com o pretérito — reside um milagre, a ressurreição do bem querer que desperta, na distância da idade, ainda que em fugaz instante, o supremo sentido da felicidade — o encontro do ser com seus anseios.
Sussurrantes, como risca de pólvora, as lembranças falam baixinho à emoção que, catalisada pelo tempo imóvel (aquele que guardamos intacto na memória) explode generosa na mente, despertando o calor da afeição, a amplitude do amor e a grandeza da vida. É a magia da evocação que provoca a agitação interior do ser e o faz sorrir ou chorar diante da lembrança corporificada que chega de repente e toma de assalto o espírito. A saudade e um nume. Sem avisar, nem sequer bater à porta, vai entrando, vai falando e — sem ninguém lhe perguntar — vai dizendo de uma idade que passou, de um mundo que imergiu, da era de encanto que ficou guardada na memória.
É assim que, no limite elástico da imaginação, a magia da presença se refugia perene na arca da existência. Remonta à criação do universo. Poder de enlevo, a saudade vem de eras ignotas e se perde no infinito, mas não foi concebida para ser simples objeto de divagação semântica. Somatória de emoções, explosão de beatitude, surgiu com o mundo, na hora mesma em que o primeiro casal foi expulso do paraíso. O drama de Adão que, privado sem remédio do Éden, aprendeu a suspirar pelos instantes de paz em um jardim a que jamais voltaria.
E essa aspiração de encanto se eternizou: o reencontro do ser com a alegria enjaulada. Todavia, reflexo do sonho, a recordação não surgiu para ser explicada. Não é exterior. É patrimônio interior que clama para ser revivido. Emanação de um mundo que já não é, anseia pelo encanto que a vida escondeu. Algemado pela existência, o homem se extasia em abrir a caixa do tempo e libertar o enlevo que está no fundo: um menino que não cresceu e continua jogando bola. Ou uma menina, que já é avó e permanece brincando de roda.
Pois foi isso aconteceu quando, dias atrás, em minha última crônica, pensando em mim, dialogava com você, falando de nós. — Lembra-se? — Eu queria comprar tudo que estava na canastra da saudade.
Porque temos a ânsia da eternidade, falava em negociar o saldo do baú. Proposta tentadora que muita gente aceitou e aderiu, libertando a raspo do tacho das recordações.
Vou-lhe contar como aconteceu.
Logo de manhãzinha — de Bicas, que fica perto de Mar de Espanha, na divisa de Minas com “ridijaneiro” (assim mesmo, como escreveu) — Aloísio Amadeu me acorda com uma preciosa carta que, pela falta de espaço, assim resumo: — O que você escreveu era o que estava preso no meu peito, eu queria dizer, mas não sabia como. E conclui a emoção: e bicas correram dos meus olhos. — De Serra Negra, Nilza Camargo Saragiotto comunga: — Confesso que voltei no tempo. E como você diz, somente leitor muito jovem poderia desdenhar desses “recuerdos” os quais realmente estão dentro de nós e conosco vão a toda parte.
De Campinas, fala Maria Nívea Pinto: — Também quero comprar tudo aquilo. Quero comprar a capacidade de sonhar e acreditar. Veio de Lúcia Ineia Fernandes esta mensagem: — Me lembrei muito de minha infância e adolescência. Muitas pessoas deveriam ler esta crônica, pois só querem comprar coisas para a matéria.
Zulmira Viana Ribeiro me intima: — Compra, mas não deixes a prateleira das lembranças vazias, pois atrás de ti, estarei recolhendo o que restou, pois a saudade é também minha. Da Alemanha, vem a mensagem de Gislene que me cumprimentando, brinca carinhosamente com o marido, lascando uma pergunta — “por que o Ricardo não é também um pouco poeta, heim?”.
O acadêmico Expedito Ramalho de Alencar, ilustre presidente do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico, assim me honra: — Embalado nas horas mortas e inertes tempos, deletei-me na merencória saudade; Ana me felicita com aplauso e Alcides Acosta, imenso artista, alma e corpo da Abal, manda uma mensagem comovente: — Como exprimir o estado de enlevo diante do seu extraordinário poema desta manhã na folha do nosso Correio Popular?
Agradecendo as comoventes manifestações, impõe-se, entretanto, uma observação genérica para lembrar que, na hora da revivência com o pretérito, não somos nós que voltamos ao passado. É o passado que vem a nosso encontro.
Para compreender essa inversão sutil de gesto e tempo, não é preciso, entanto, refletir. Basta ouvir um violino a tocar, na solidão da noite, uma esquecida canção de outras eras. Talvez um tango, um samba ou a lânguida valsa do primeiro beijo. Descobrirá que a emoção fala, o coração freme e os olhos choram. Enlevo da alma! E o ser se reencontra, à beira do caminho, consigo mesmo.
• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
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