sábado, 27 de agosto de 2011







O ato de criação é de natureza obscura

* Por Eugênio de Andrade

O ato de criação é de natureza obscura; nele é impossível destrinçar o que é da razão e o que é do instinto, o que é do mundo e o que é da terra. Nunca nenhum dualismo serviu bem o poeta. Esse «pastor do Ser», na tão bela expressão de Heidegger, é, como nenhum outro homem, nostálgico de uma antiga unidade. As mil e uma antinomias, tão escolarmente elaboradas, quando não pervertem a primordial fonte do desejo, pecam sempre por cindir a inteireza que é todo um homem. Não há vitória definitiva sem a reconciliação dos contrários. É no mar crepuscular e materno da memória, onde as águas «superiores» não foram ainda separadas das «inferiores», que as imagens do poeta sonham pela primeira vez com a precária e fugidia luz da terra.
Diante do papel, que «la blancheur défend», o poeta é uma longa e só hesitação. Que Ifigénia terá de sacrificar para que o vento propício se levante e as suas naves possam avistar os muros de Tróia? Que augúrios escuta, que enigmas decifra naquele rumor de sangue em que se debruça cheio de aflição? Porque ao princípio é o ritmo; um ritmo surdo, espesso, do coração ou do cosmos — quem sabe onde um começa e o outro acaba? Desprendidas de não sei que limbo, as primeiras sílabas surgem, trêmulas, inseguras, tateando no escuro, como procurando um tênue, difícil amanhecer. Uma palavra de súbito brilha, e outra, e outra ainda. Como se umas às outras se chamassem, começam a aproximar-se, dóceis; o ritmo é o seu leito; ali se fundem num encontro nupcial, ou mal se tocam na troca de uma breve confidência, quando não se repelem, crispadas de ódio ou aversão, para regressarem à noite mais opaca. Uma música, sem nome ainda, começa a subir, qualquer coisa principia a tomar corpo e figura, a respirar, a movimentar-se, a afirmar a sua existência e a do poeta com ela, a erguerem-se ambos a uma comum transparência, até serem canto claro e fundo — voz do homem. Porque o poeta vai nascendo com o poema para a mais efêmera das existências; são as palavras, a luz e o calor que de umas às outras se comunicam, que o vão por sua vez criando a ele, acabando por lhe impor a mais dura das leis — a de que se extinga para dar lugar à fulguração do poema, a de que deixe de ser para que o poema seja, e dure, e o seu fogo se comunique ao coração dos homens.

in “Rosto Precário”

Reproduzido do site “Citador”,
WWW.citador.pt


• Poeta português, ganhador do Prêmio Camões

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