quarta-feira, 17 de agosto de 2011











Em minha vida entrou um rio


* Por Mara Narciso

A ideia que se tinha da cidade de Botumirim – Serrinha em Tupi-Guarani -, não era das melhores, devido à informação de ser um local pobre e com casos da Doença de Chagas. Um médico morreu aos 42 anos, vítima do mal, mas isso foi vencido, e agora os desafios são outros. Na saída para a Rio-Bahia, a cidade fica a 170 km de Montes Claros, no norte de Minas.
Na outra visita não foi possível chegar ao Rio de Peixes. Tinha acontecido uma tempestade horas antes e um riozinho transbordou, não dando passagem e obrigando a mudança de planos. Por outras estradinhas morradas foram conhecidas atrações como a Cachoeira do Bananal e o Morro do Engenho.
A natureza foi caprichosa e as montanhas não são montanhas apenas, mas mirantes privilegiados. As pedras locais são uma desculpa para o vento esculpir figuras de estética exuberante. Sobre os morros desfilam imagens que imitam construções variadas e animais. Sobre a silhueta montanhosa, numa hora brota uma lua cheia avermelhada e horas depois um nascer do sol daqueles. Aplausos aos dois shows. Por onde se olha, vê-se que um paisagista talentoso e cheio de critérios esteve por ali, arrumando as peças e colocando-as nos lugares certos, para obter o melhor efeito.
Andando pelo cerrado, mesmo em época de seca, podem-se vislumbrar flores brancas, amarelas, vermelhas e roxas, de vários matizes, tamanhos e tonalidades, além de alguns pés de ipê-cor-de-rosa ao longe. A paisagem mostra capins verde-cinzentos arrumados de cada lado por um jardineiro que os podou assimetricamente e os colocou para enfeitar a estrada. Depois pendões altos aparecem feito vasos de decoração, artísticos e nobres. A cada passo, novas revelações.
Ao longo do caminho, cada canto é um presépio natalino, de tão detalhista que foi a natureza, com seus cactos, matinhos, pedregulhos e areia branca. E na estradinha poeirenta, cheia de subidas e curvas, vê-se lá do alto, serpenteando o vale, o Rio de Peixes, num azul celestial. O verde é ralo ao seu lado. Teme-se pelos riscos que corre. Vai-se descendo a serra à procura da sua fama. O que esconde esse magnífico acidente geográfico?
As áreas produtoras, atuais ou antigas, de diamantes, costumam ter as mesmas características geológicas de cor e temperatura. As rochas são escuras, os rios têm as águas cristalinas vermelho-ferruginosas, e as areias em torno são branquíssimas. Dentro dos rios, as pedras polidas lembram mármores de várias tonalidades, do cinza, ao rosa e ao branco. E aqui, como é?
Lá está o garboso rio. Uma areia branca volumosa forma uma leve ondulação lateral, a água escura, porém cristalina, já surpreende, e mesmo no inverno, tem seu charme de rio do cerrado. E o que mais encanta? Pedras brancas de mármore polido. Descendo o rio e observando as suas particularidades, vêem-se ilhas e poços tão belos, que emocionam. O impacto de cada imagem vista ao se caminhar pelas margens vai levando o visitante a ficar cada vez mais impressionado. Capins com florezinhas coloridas, águas límpidas com peixinhos, caprichos e mais caprichos, e quem acredita em Deus diz que ele esteve por lá fazendo as suas artes.
Ao largo do rio, lá adiante, as esculturas naturais imitam cidades gregas e suas pilastras helênicas. Qual escultor prodigioso usou do cinzel para cortar pedras arredondadas no leito aquático? Não é improvável que se chegue ao choro ao se olhar tudo aquilo. Emoção da boa. A água cai pela descida íngreme, e vista do alto, reflete a cor do céu, numa espécie de miragem. Uma pequena cachoeira desce a rampa levando pedaços de vida e de história. Os girinos brincam nas águas turvas e lodosas em pequenas grotas laterais de águas paradas, enquanto a areia branca continua inacreditável naquela altura dos acontecimentos.
Uma turma de rapazes chega ao local com um som explosivo, quebrando intencionalmente o sossego do rio. Um deles, ao ser notado, usa o controle remoto para mudar insistentemente a música punk. Uma letra fala que o ouvinte tem de aguentar e que não está nem aí para a polícia. Bebendo os últimos goles da cerveja em lata, o rapaz a joga para o alto, e a vê cair girando na areia branca. Naturalmente aborreceu um grupo próximo. Depois, pessoas deram uma olhada na parte alta do rio, e vieram catando o escasso material plástico encontrado, alguns já em decomposição. O rapaz, ao ver a turma passar com o lixo, pegou a lata, há pouco jogada, e perguntou aonde era a lixeira. “Não tem. É preciso recolher e levar para casa”: disseram-lhe.
Ele colocou a lata vazia dentro do carro, abaixou o som, enquanto o grupo aplaudiu em silêncio e o Rio de Peixes suspirou aliviado.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

4 comentários:

  1. O paraíso em descrição detalhada. Gostei especialmente do final! Abraços e parabéns, Doutora.

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  2. É um passeio perfeito onde se crê irem as almas após a morte para gozarem eterna felicidade. Segundo a fé cristã. Gostei imensamente, é um olhar clínico sobre a natureza, sua beleza que está sofrendo as transformações que a humanidade lhe tem imposto.
    "... Capins com florezinhas coloridas, águas límpidas com peixinhos, caprichos e mais caprichos, e quem acredita em Deus diz que ele esteve por lá fazendo as suas artes."
    Parabéns, Mara!

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  3. Passear pelo Rio de Peixes foi bom, assim como descrevê-lo. Bom passeio também é ler os comentários de vocês. Obrigada, Gente!

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