A vivacidade dos judeus prestamistas*
**** Paulo Lisker (Israel)
Era no tempo que ninguém tinha carro nem existiam supermercados para fazer compras do extremamente necessário para preparar o almoço ou a janta da filharada, para o marido ou o patrão, que só voltava da faina diária lá pelo anoitecer e "morto de fome"!
Daí a importância de uma venda ou uma mercearia no bairro e mais que nada a presença do verdureiro, fruteiro e outros inúmeros vendedores de tudo que era necessário para levar a cozinha e a casa numa situação tal que não faltasse nada na despensa para o preparo das refeições. (Uma crônica sobre os "pregões" que ouvíamos na nossa rua será publicada proximamente, se Deus quiser).
Os prestamistas judeus que moravam na Rua Gervásio Pires e no bairro da Boa Vista em geral, eram pequenos comerciantes, (na realidade ambulantes), que saiam a vender a prestação cortes de tecido, sapatos, sombrinhas, móveis rústicos etc., nos subúrbios do Recife.
Viajavam de bonde para Areias, Afogados, Apipucos, Camaragibe, Cordeiro, Peixinhos, Casa Amarela, Imbiribeira, Água Fria, Tegipió, Beberibe, Jaboatão, Catende, e muitos outros lugares mais afastados do Recife!
Aonde os bondes não chegavam tomavam o trem da "Gretoeste", nunca relutavam, fosse chuva ou calor arretado, era o "ganha pão" destes imigrantes judeus que chegaram ao "novo mundo" no principio do século passado!
Meu pai me dizia com muito orgulho e respeito que estes prestamistas vestiram e calçaram o povo suburbano, pois loja nenhuma desses artigos no Recife vendia nada a prestação (fiado, não era costume na época), ainda mais a um cliente descalço mal vestido e sem documento de identidade de qualquer espécie!
Meu pai, meu avô, se sentiam orgulhosos de terem se "embrenhado no mato", procurando fazer amizades com gente pobre e humilde, trazendo o "desenvolvimento" para aqueles que nem se arriscavam a ir às lojas do Recife para pegar estes artigos com suas próprias mãos.
Os prestamistas judeus foram na época os elos de ligação entre o habitante suburbano pobre e as lojas que negociavam com estas mercadorias.
Eles compravam a prazo nas lojas do Recife somente baseado na sua "palavra de honra" e revendiam aos moradores pobres dos subúrbios a prazo ainda mais extensos para desta forma facilitar-lhes o pagamento.
Este negócio era baseado em confiança mútua, não se usavam cheques, promissórias, ou outro qualquer sistema de garantia.
Tudo era registrado num cartão comum com o valor da compra e os pagamentos que foram realizados. Legalmente em caso de discórdia, não valiam absolutamente nada.
Tudo estava baseado só na "palavra de honra" de um cliente analfabeto sem carteira de identidade ou qualquer outro documento oficial de identificação, ou lugar de moradia.
Grande parte dos prestamistas também era de analfabetos, assim como seus fregueses.
Falavam com muitas dificuldades o português. Em diversas ocasiões se viram em perigo de vida, não por assalto ou roubo de mercadoria que carregavam, mas pela maneira errônea de se comunicar e se criavam sérios desentendimentos.**
Isto posto, lógico que não sabiam nem ler nem escrever, dominavam o iídiche*** e assim se comunicavam entre si na sociedade de emigrantes europeus.
A Praça Maciel Pinheiro era o Parlamento dessa gente trabalhadora, lá se recebia toda informação necessária para se manter em dia, receber empréstimo, escutar os boatos, e quais as lojas estão facilitando a compra de mercadorias para levar a prazo e vender nos subúrbios.
Disse-me Sr. Moishe (um tio intelectual) que também vivia de vender a prestação, que mesmo estes que vieram para o Recife dos distintos países europeus, falavam mal o idioma materno, e de ler e escrever, nem se fala!
Perguntei, como se aventuravam a sair pro "mato", levando mercadoria sem saber falar, me respondeu que os mais veteranos os ensinaram três palavras que serviriam para "entabular uma negociação"!
Quais? Retruquei, e ele sem titubear me disse:
BOM, BUNITO (bonito), BARATO.
BOM, BUNITO, BARATO,
BOM, BUNITO, BARATO.
Este era o famoso pregão, que usavam pelas veredas dos subúrbios, iam de casebre ou mocambo a mocambo propondo as mercadorias das lojas do Recife.
O povo já de longe identificava pelo sotaque de estrangeiro que o "galego ou o russo da prestação" estava chegando com os "objetos" pra vender ou cobrar a parcela do pagamento semanal ou mensal!
Estes prestamistas judeus andavam pelos caminhos sem rua, sem nome, sem numero das "vivendas", pregando em voz alta, quase gritando, BOM, BARATO, BUNITO - BOM, BARATO, BUNITO, BOM. BARATO, BUNITO....
Até que o povo acudia, quando necessitava algo que o "galego ou o russo da prestação" trazia para vender.
Para outros servia de alerta e permitia suficiente tempo ao ouvir o pregão iam se esconder, pois não tinham ou não queriam pagar a prestação da semana. E mandavam o menino para o "front":
-Pai mandou dizer que ele não está em casa e que seu Moises volte na semana que vem. (Para o pobre e humilde suburbano todos os judeus eram Moises).
O "seu Moises" entendia o comunicado, mas nunca reclamou, pois a simbiose entre as partes era o verdadeiro postulado da "teoria comercial da venda à prestação".
BOM, BARATO, BUNITO - BOM, BARATO, BUNITO - BOM. BARATO, BUNITO..... Continuavam a faina diária caminhando a um rumo não bem definido.
Assim começaram a sua vida como pequenos ambulantes "prestamistas" quase todos os judeus do Recife.
Meio intrigado e desconfiado com essa estória, perguntei ao tio Moishe:
-Como viajavam de bonde, se não sabiam ler o letreiro que indicava o destino?
Com um sorriso meio sacana me respondeu o tio Moishe::
-Eles conheciam o motorneiro e assim sabiam para onde vai o "tramway"!
Imagine se o motorneiro adoecia ou se embebedava com a vitoria do Santa Cruz no último domingo, ou mesmo se o mudassem de linha, aí "fodeu a cartola", os dias de viagem ficavam perdidos até que tudo voltasse a se normalizar.
Imaginem o prestamista com um baú de mercadorias "lutando" para subir no bonde e depois de pagar a passagem ao condutor, descobrir que estava no bonde errado.
É o que nós os letrados chamamos de "imprevistos no exercício da profissão".
Vida difícil dessa gente que procurava o seu "ganha pão", mesmo com todas as dificuldades neste novo mundo para eles totalmente desconhecido.
Tem também outras coisas que ninguém conta daquela situação difícil que passaram os judeus no principio de século XX.
Não era costume contar as dificuldades e aperreios que atravessaram (questão de orgulho próprio), para evitar que os outros patrícios ficassem sabendo.
Um exemplo clássico era que estes imigrantes judeus dificilmente diferenciavam um cliente de outro e diziam que "todos os negros são parecidos".
Ao vender um objeto qualquer a fulano, quando voltava depois de uma semana ou duas para cobrar a primeira prestação já não tinha certeza para quem vendeu, tanto fulano como sicrano diziam que nunca compraram nada do "seu Moises".
Naquele tempo em arrabaldes de crescimento espontâneo não era comum nomes de ruas, numeração dos mocambos, ninguém assinava nada (analfabetos), era necessário ser bom fisionomista para voltar ao mesmo lugar e a mesma pessoa.
Meu pai teve uma idéia genial, comprou do livreiro Baras na Rua da Matriz uma caixa de giz escolar.
Agora quando vendia algo a um freguês, marcava na porta ou na taipa com giz um numero ou nome (em geral em letras hebraicas como no iídiche) e paralelamente assinalava a sua lista, o subúrbio que visitou e qual o motorneiro do bonde.
Satisfeito com o invento, não contou aos outros patrícios para que não lhe roubassem a "patente", acho que se via entre os mais sérios candidatos para o próximo Prêmio Nobel de Economia.
Mas o que meu pai não considerou foi algo de capital importância.
Pois "Deus é brasileiro" e o Recife tem um clima tropical úmido com aguaceiros (torós de chuvas intensas), que apagaram todos os sinais de giz que escreveu nas portas dos mocambos.
No dia da cobrança, "todos negros e seus mocambos" eram iguaizinhos e tudo voltava à estaca zero.
Quem comprou, quem pagou quem é você, quem sou eu, o enigma continuava.
Esta profissão nas condições das primeiras décadas do século passado tinha por demais imprevistos.
Inventou de comprar uma motocicleta para facilitar a andança no areal, aí vinham as cheias muito comuns no Recife causadas pelos aterros feitos pelos portugueses depois que os holandeses se foram da Cidade Mauricia!
"Pra que tanto canal”, matutavam os portugueses, “vamos aterrar com lixo!”
Assim sendo, não funcionava a drenagem das cheias nem o motor da motocicleta.
Fim da etapa do "prestamista motorizado"!
Depois comprou um cavalo, este bicho até nadar sabia e não tinha medo de lama. Mas como levá-lo para nossa casa no Recife?
Minha mãe não queria vê-lo nem de longe, então teve que deixar o pobre animal com um criador no Prado.
No princípio estava tudo bem até que chegaram as contas de comidas, remédios o trabalho pelo cuidado com o animal, ai chegou também o fim do "capítulo do prestamista montado".
Neste "comercio à prestação", era praxe cobrar dos clientes preços exorbitantes, isto pela simples razão que um freguês fugia, outro se escondia, ou tinha perdido o emprego, outro comprou remédios, pois está doente com a "bexiga lixa”, outro devolvia a mercadoria porque não foi do gosto da mulher. Resultado, para um que pagava, outros 4-5 se desvencilhavam por um motivo ou outro!
Não era sopa, sem saber o idioma, vivendo do mínimo, sem casa própria, às vezes sem água encanada ou sem ter como pagar por eletricidade (em muitas casas era comum o candeeiro a querosene).
O gás vinha do Gasômetro através de tubária que mais vazava do que conduzia o gás, (perigo danado de explosão).
Cozinhavam em fogão a carvão vegetal, na minha casa mesmo, tínhamos um quarto no fundo do quintal para reserva de carvão caso faltasse o gás. Interessante que nesta "cama de carvão" as galinhas preferiam pôr os ovos.
Quando chovia eram goteiras em quase toda a casa pelas telhas partidas e falta de dinheiro para pôr a coisa em ordem. Uma correria danada para colocar bacias, latas, até garrafas, tudo que servisse para evitar inundação da casa.
Ninguém comprava nada novo, móveis necessários, camas, cadeiras, armários, tudo de "segunda mão", rematado no leilão Maia na Rua da Conceição.
O problema crucial dessas compras era o cupim que vinha infestado nestes móveis de madeira, os comiam inteirinhos até os tacos do chão reduziam a pó.
O esgoto da casa era desviado para uma profunda fossa no quintal, pois muitas ruas não estavam conectadas com o esgoto municipal que só foi construído muitos anos depois.
Hoje entendo como nossas fruteiras no quintal eram tão produtivas, estavam com suas raízes recebendo os minerais necessários do esterco humano que a nossa família produzia.
Quem poderia imaginar estas dificuldades?
A geração judia de hoje, nem de leve, nos seus piores pesadelos, poderia imaginar tal situação em que viveram seus pais e avós. Assim era a vida nos primeiros decênios do século XX!
A adaptação ao "modus vivendis brasiliense" não foi fácil, creia-me.
Só a perseverança desta gente trabalhadora entrelaçada com boa maneira do acolhimento por parte da população local, poderia no futuro absorver esta população de imigrantes e possibilitar o que hoje são para a vida sócio-econômica do Recife.
* Prestamistas - Vendedores ambulantes, em geral nos sudurbios das grandes cidades. Vendas a prazo de mercadorias e utensilios domesticos em geral para a população menos favorecida.
** No livro "JACOB da BALALAICA" do Dr. Meraldo Zisman, no trecho ASPECLÁRIA. Pág. 53-54, traz um exemplo desta natureza, muito comum pela falta quase total do vocabulário português destes emigrantes. Libertas editora.
*** Iídiche - Um dialeto falado pelos judeus europeus, baseado na língua alemã e que durante séculos foi o elo de ligação entre eles. Quando imigraram para o "Novo Mundo" levaram consigo este idioma para todo continente americano.
**** Escritor
**** Paulo Lisker (Israel)
Era no tempo que ninguém tinha carro nem existiam supermercados para fazer compras do extremamente necessário para preparar o almoço ou a janta da filharada, para o marido ou o patrão, que só voltava da faina diária lá pelo anoitecer e "morto de fome"!
Daí a importância de uma venda ou uma mercearia no bairro e mais que nada a presença do verdureiro, fruteiro e outros inúmeros vendedores de tudo que era necessário para levar a cozinha e a casa numa situação tal que não faltasse nada na despensa para o preparo das refeições. (Uma crônica sobre os "pregões" que ouvíamos na nossa rua será publicada proximamente, se Deus quiser).
Os prestamistas judeus que moravam na Rua Gervásio Pires e no bairro da Boa Vista em geral, eram pequenos comerciantes, (na realidade ambulantes), que saiam a vender a prestação cortes de tecido, sapatos, sombrinhas, móveis rústicos etc., nos subúrbios do Recife.
Viajavam de bonde para Areias, Afogados, Apipucos, Camaragibe, Cordeiro, Peixinhos, Casa Amarela, Imbiribeira, Água Fria, Tegipió, Beberibe, Jaboatão, Catende, e muitos outros lugares mais afastados do Recife!
Aonde os bondes não chegavam tomavam o trem da "Gretoeste", nunca relutavam, fosse chuva ou calor arretado, era o "ganha pão" destes imigrantes judeus que chegaram ao "novo mundo" no principio do século passado!
Meu pai me dizia com muito orgulho e respeito que estes prestamistas vestiram e calçaram o povo suburbano, pois loja nenhuma desses artigos no Recife vendia nada a prestação (fiado, não era costume na época), ainda mais a um cliente descalço mal vestido e sem documento de identidade de qualquer espécie!
Meu pai, meu avô, se sentiam orgulhosos de terem se "embrenhado no mato", procurando fazer amizades com gente pobre e humilde, trazendo o "desenvolvimento" para aqueles que nem se arriscavam a ir às lojas do Recife para pegar estes artigos com suas próprias mãos.
Os prestamistas judeus foram na época os elos de ligação entre o habitante suburbano pobre e as lojas que negociavam com estas mercadorias.
Eles compravam a prazo nas lojas do Recife somente baseado na sua "palavra de honra" e revendiam aos moradores pobres dos subúrbios a prazo ainda mais extensos para desta forma facilitar-lhes o pagamento.
Este negócio era baseado em confiança mútua, não se usavam cheques, promissórias, ou outro qualquer sistema de garantia.
Tudo era registrado num cartão comum com o valor da compra e os pagamentos que foram realizados. Legalmente em caso de discórdia, não valiam absolutamente nada.
Tudo estava baseado só na "palavra de honra" de um cliente analfabeto sem carteira de identidade ou qualquer outro documento oficial de identificação, ou lugar de moradia.
Grande parte dos prestamistas também era de analfabetos, assim como seus fregueses.
Falavam com muitas dificuldades o português. Em diversas ocasiões se viram em perigo de vida, não por assalto ou roubo de mercadoria que carregavam, mas pela maneira errônea de se comunicar e se criavam sérios desentendimentos.**
Isto posto, lógico que não sabiam nem ler nem escrever, dominavam o iídiche*** e assim se comunicavam entre si na sociedade de emigrantes europeus.
A Praça Maciel Pinheiro era o Parlamento dessa gente trabalhadora, lá se recebia toda informação necessária para se manter em dia, receber empréstimo, escutar os boatos, e quais as lojas estão facilitando a compra de mercadorias para levar a prazo e vender nos subúrbios.
Disse-me Sr. Moishe (um tio intelectual) que também vivia de vender a prestação, que mesmo estes que vieram para o Recife dos distintos países europeus, falavam mal o idioma materno, e de ler e escrever, nem se fala!
Perguntei, como se aventuravam a sair pro "mato", levando mercadoria sem saber falar, me respondeu que os mais veteranos os ensinaram três palavras que serviriam para "entabular uma negociação"!
Quais? Retruquei, e ele sem titubear me disse:
BOM, BUNITO (bonito), BARATO.
BOM, BUNITO, BARATO,
BOM, BUNITO, BARATO.
Este era o famoso pregão, que usavam pelas veredas dos subúrbios, iam de casebre ou mocambo a mocambo propondo as mercadorias das lojas do Recife.
O povo já de longe identificava pelo sotaque de estrangeiro que o "galego ou o russo da prestação" estava chegando com os "objetos" pra vender ou cobrar a parcela do pagamento semanal ou mensal!
Estes prestamistas judeus andavam pelos caminhos sem rua, sem nome, sem numero das "vivendas", pregando em voz alta, quase gritando, BOM, BARATO, BUNITO - BOM, BARATO, BUNITO, BOM. BARATO, BUNITO....
Até que o povo acudia, quando necessitava algo que o "galego ou o russo da prestação" trazia para vender.
Para outros servia de alerta e permitia suficiente tempo ao ouvir o pregão iam se esconder, pois não tinham ou não queriam pagar a prestação da semana. E mandavam o menino para o "front":
-Pai mandou dizer que ele não está em casa e que seu Moises volte na semana que vem. (Para o pobre e humilde suburbano todos os judeus eram Moises).
O "seu Moises" entendia o comunicado, mas nunca reclamou, pois a simbiose entre as partes era o verdadeiro postulado da "teoria comercial da venda à prestação".
BOM, BARATO, BUNITO - BOM, BARATO, BUNITO - BOM. BARATO, BUNITO..... Continuavam a faina diária caminhando a um rumo não bem definido.
Assim começaram a sua vida como pequenos ambulantes "prestamistas" quase todos os judeus do Recife.
Meio intrigado e desconfiado com essa estória, perguntei ao tio Moishe:
-Como viajavam de bonde, se não sabiam ler o letreiro que indicava o destino?
Com um sorriso meio sacana me respondeu o tio Moishe::
-Eles conheciam o motorneiro e assim sabiam para onde vai o "tramway"!
Imagine se o motorneiro adoecia ou se embebedava com a vitoria do Santa Cruz no último domingo, ou mesmo se o mudassem de linha, aí "fodeu a cartola", os dias de viagem ficavam perdidos até que tudo voltasse a se normalizar.
Imaginem o prestamista com um baú de mercadorias "lutando" para subir no bonde e depois de pagar a passagem ao condutor, descobrir que estava no bonde errado.
É o que nós os letrados chamamos de "imprevistos no exercício da profissão".
Vida difícil dessa gente que procurava o seu "ganha pão", mesmo com todas as dificuldades neste novo mundo para eles totalmente desconhecido.
Tem também outras coisas que ninguém conta daquela situação difícil que passaram os judeus no principio de século XX.
Não era costume contar as dificuldades e aperreios que atravessaram (questão de orgulho próprio), para evitar que os outros patrícios ficassem sabendo.
Um exemplo clássico era que estes imigrantes judeus dificilmente diferenciavam um cliente de outro e diziam que "todos os negros são parecidos".
Ao vender um objeto qualquer a fulano, quando voltava depois de uma semana ou duas para cobrar a primeira prestação já não tinha certeza para quem vendeu, tanto fulano como sicrano diziam que nunca compraram nada do "seu Moises".
Naquele tempo em arrabaldes de crescimento espontâneo não era comum nomes de ruas, numeração dos mocambos, ninguém assinava nada (analfabetos), era necessário ser bom fisionomista para voltar ao mesmo lugar e a mesma pessoa.
Meu pai teve uma idéia genial, comprou do livreiro Baras na Rua da Matriz uma caixa de giz escolar.
Agora quando vendia algo a um freguês, marcava na porta ou na taipa com giz um numero ou nome (em geral em letras hebraicas como no iídiche) e paralelamente assinalava a sua lista, o subúrbio que visitou e qual o motorneiro do bonde.
Satisfeito com o invento, não contou aos outros patrícios para que não lhe roubassem a "patente", acho que se via entre os mais sérios candidatos para o próximo Prêmio Nobel de Economia.
Mas o que meu pai não considerou foi algo de capital importância.
Pois "Deus é brasileiro" e o Recife tem um clima tropical úmido com aguaceiros (torós de chuvas intensas), que apagaram todos os sinais de giz que escreveu nas portas dos mocambos.
No dia da cobrança, "todos negros e seus mocambos" eram iguaizinhos e tudo voltava à estaca zero.
Quem comprou, quem pagou quem é você, quem sou eu, o enigma continuava.
Esta profissão nas condições das primeiras décadas do século passado tinha por demais imprevistos.
Inventou de comprar uma motocicleta para facilitar a andança no areal, aí vinham as cheias muito comuns no Recife causadas pelos aterros feitos pelos portugueses depois que os holandeses se foram da Cidade Mauricia!
"Pra que tanto canal”, matutavam os portugueses, “vamos aterrar com lixo!”
Assim sendo, não funcionava a drenagem das cheias nem o motor da motocicleta.
Fim da etapa do "prestamista motorizado"!
Depois comprou um cavalo, este bicho até nadar sabia e não tinha medo de lama. Mas como levá-lo para nossa casa no Recife?
Minha mãe não queria vê-lo nem de longe, então teve que deixar o pobre animal com um criador no Prado.
No princípio estava tudo bem até que chegaram as contas de comidas, remédios o trabalho pelo cuidado com o animal, ai chegou também o fim do "capítulo do prestamista montado".
Neste "comercio à prestação", era praxe cobrar dos clientes preços exorbitantes, isto pela simples razão que um freguês fugia, outro se escondia, ou tinha perdido o emprego, outro comprou remédios, pois está doente com a "bexiga lixa”, outro devolvia a mercadoria porque não foi do gosto da mulher. Resultado, para um que pagava, outros 4-5 se desvencilhavam por um motivo ou outro!
Não era sopa, sem saber o idioma, vivendo do mínimo, sem casa própria, às vezes sem água encanada ou sem ter como pagar por eletricidade (em muitas casas era comum o candeeiro a querosene).
O gás vinha do Gasômetro através de tubária que mais vazava do que conduzia o gás, (perigo danado de explosão).
Cozinhavam em fogão a carvão vegetal, na minha casa mesmo, tínhamos um quarto no fundo do quintal para reserva de carvão caso faltasse o gás. Interessante que nesta "cama de carvão" as galinhas preferiam pôr os ovos.
Quando chovia eram goteiras em quase toda a casa pelas telhas partidas e falta de dinheiro para pôr a coisa em ordem. Uma correria danada para colocar bacias, latas, até garrafas, tudo que servisse para evitar inundação da casa.
Ninguém comprava nada novo, móveis necessários, camas, cadeiras, armários, tudo de "segunda mão", rematado no leilão Maia na Rua da Conceição.
O problema crucial dessas compras era o cupim que vinha infestado nestes móveis de madeira, os comiam inteirinhos até os tacos do chão reduziam a pó.
O esgoto da casa era desviado para uma profunda fossa no quintal, pois muitas ruas não estavam conectadas com o esgoto municipal que só foi construído muitos anos depois.
Hoje entendo como nossas fruteiras no quintal eram tão produtivas, estavam com suas raízes recebendo os minerais necessários do esterco humano que a nossa família produzia.
Quem poderia imaginar estas dificuldades?
A geração judia de hoje, nem de leve, nos seus piores pesadelos, poderia imaginar tal situação em que viveram seus pais e avós. Assim era a vida nos primeiros decênios do século XX!
A adaptação ao "modus vivendis brasiliense" não foi fácil, creia-me.
Só a perseverança desta gente trabalhadora entrelaçada com boa maneira do acolhimento por parte da população local, poderia no futuro absorver esta população de imigrantes e possibilitar o que hoje são para a vida sócio-econômica do Recife.
* Prestamistas - Vendedores ambulantes, em geral nos sudurbios das grandes cidades. Vendas a prazo de mercadorias e utensilios domesticos em geral para a população menos favorecida.
** No livro "JACOB da BALALAICA" do Dr. Meraldo Zisman, no trecho ASPECLÁRIA. Pág. 53-54, traz um exemplo desta natureza, muito comum pela falta quase total do vocabulário português destes emigrantes. Libertas editora.
*** Iídiche - Um dialeto falado pelos judeus europeus, baseado na língua alemã e que durante séculos foi o elo de ligação entre eles. Quando imigraram para o "Novo Mundo" levaram consigo este idioma para todo continente americano.
**** Escritor
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