Lagartas, girinos e mariposas
* Por Mara Narciso
O primeiro dia de férias tinha programa pronto: procurar lagartas. Principalmente no verão, quando o mundo fica acelerado. Tudo cresce mais rápido, desde as unhas e os cabelos, até a altura dessa menina curiosa. Avistava de longe a palha de um coqueiro e chegava até lá. Quando não tinha ninguém olhando, -vejam só, as casas ficavam abertas-, entrava no jardim, catava as lagartas que tinham descido e as levava para sua casa, um apartamento no centro da cidade.
As lagartas de coqueiro, nessa fase, não comem mais. Procuram um canto, ficam imóveis e se transmutam em casulos ou crisálidas. Depois de alguns dias, a pupa fica com cor escura, a carapaça se rompe e se solta e é só esperar a borboleta sair escorregando. Não pode haver ajuda, e mesmo que demore, é bom esperar, senão a metamorfose interrompe-se e as asas não se abrem, ficando atrofiadas. Então, ao sair da casca, a ex-lagarta, com o abdômen dilatado, tem de soltar um líquido amarelo, começar a andar, esticar-se toda, e depois, de asas abertas e secas, já poderá voar. Essa etapa pode demorar horas.
Nesse ponto a menina era pura crueldade. Após ver tudo se transformar, ela, que vinha meticulosamente observando todo o processo, com um alfinete, espetava as costas do inseto, que morria debatendo-se bastante, e o colocava fixo num isopor. E para nada, pois em poucos dias as asas se desprendiam, sob a ação do tempo e de formigas. Com o ressecamento, entre pó e asa esfarelada, o animal inútil era jogado fora.
Nas idas aos clubes, a menina pegava girinos nas lagoas. Trazia tudo num vidro. Montava em casa uma espécie de aquário numa bacia de alumínio, sendo numa das metades terra e na outra água. Os bichinhos eram acompanhados em seu desenvolvimento, nadando e crescendo, criando perninhas, primeiro as posteriores e depois as anteriores, até que um dia saiam da água, sapinhos com cauda curta, e esta depois caia. A menina dava carne de boi para os girinos em pedaços bem pequenos, e eles, anfíbios carnívoros, comiam sem reclamar. Eram muitos dias para essa metamorfose se completar. Ao final, a frustração: os sapinhos pulavam, mas não chegavam a crescer, pois logo morriam. E sem a interferência da menina.
Quando as primeiras chuvas caiam, as mariposas chegavam junto delas. À noite, a casa era invadida por uma multidão desses insetos, que giravam em torno das lâmpadas. A menina catava algumas, que ao serem tocadas perdiam as asas. Então, a menina as colocava num vidro de maionese cheio de terra molhada e fofa. As mariposas começavam a cavar, tentado formar um formigueiro. Eram túneis e mais túneis que, quando próximos as bordas, mostravam o trabalho incansável das futuras rainhas. Mas a menina nunca viu o fim do trabalho. Ela não sabe o motivo, mas as mariposas morriam. Devia ser falta de água e comida. Não conseguiu descobrir o que esses bichinhos gostavam para poder alimentá-los.
O quarto de menina era cheio de vidros de álcool com milhares de insetos de todos os tipos, uma coleção de pedras e outra de areia de todas as cores, além da coleção de borboletas, que caçava com uma armação de arame e tule, no formato de uma biruta de aeroporto, na Praça de Esportes. O que mais chamava atenção nesse quarto de cheiros estranhos e nada cor-de-rosa era uma cabeça de burro, parte superior e mandíbula, que ela tinha pegado na beira de um rio, toda descarnada. Trouxe para casa e ficou uma tarde de domingo inteirinha lavando com escova e sapólio esse monumento. Muita gente teria medo do azar da tal cabeça, não a menina nunca foi de crendices. Acumulava essas coisas esquisitas, por vezes bizarras, mas, ao lado dos estudos de História Natural na Enciclopédia Conhecer, na casa do avô, não pensava em medos.
Quem visse essa menina, nessa mania que durou muitos anos, da terceira infância até a adolescência, poderia imaginar que ela seria uma naturalista, feito Charles Darwin, gênio muito admirado por ela, e por todos, ou até mesmo uma bióloga, mas ela desapontou todo mundo que pensou nisso. Bobagem tentar adivinhar quem será o quê! Acabou médica, jornalista e escritora.
*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-
* Por Mara Narciso
O primeiro dia de férias tinha programa pronto: procurar lagartas. Principalmente no verão, quando o mundo fica acelerado. Tudo cresce mais rápido, desde as unhas e os cabelos, até a altura dessa menina curiosa. Avistava de longe a palha de um coqueiro e chegava até lá. Quando não tinha ninguém olhando, -vejam só, as casas ficavam abertas-, entrava no jardim, catava as lagartas que tinham descido e as levava para sua casa, um apartamento no centro da cidade.
As lagartas de coqueiro, nessa fase, não comem mais. Procuram um canto, ficam imóveis e se transmutam em casulos ou crisálidas. Depois de alguns dias, a pupa fica com cor escura, a carapaça se rompe e se solta e é só esperar a borboleta sair escorregando. Não pode haver ajuda, e mesmo que demore, é bom esperar, senão a metamorfose interrompe-se e as asas não se abrem, ficando atrofiadas. Então, ao sair da casca, a ex-lagarta, com o abdômen dilatado, tem de soltar um líquido amarelo, começar a andar, esticar-se toda, e depois, de asas abertas e secas, já poderá voar. Essa etapa pode demorar horas.
Nesse ponto a menina era pura crueldade. Após ver tudo se transformar, ela, que vinha meticulosamente observando todo o processo, com um alfinete, espetava as costas do inseto, que morria debatendo-se bastante, e o colocava fixo num isopor. E para nada, pois em poucos dias as asas se desprendiam, sob a ação do tempo e de formigas. Com o ressecamento, entre pó e asa esfarelada, o animal inútil era jogado fora.
Nas idas aos clubes, a menina pegava girinos nas lagoas. Trazia tudo num vidro. Montava em casa uma espécie de aquário numa bacia de alumínio, sendo numa das metades terra e na outra água. Os bichinhos eram acompanhados em seu desenvolvimento, nadando e crescendo, criando perninhas, primeiro as posteriores e depois as anteriores, até que um dia saiam da água, sapinhos com cauda curta, e esta depois caia. A menina dava carne de boi para os girinos em pedaços bem pequenos, e eles, anfíbios carnívoros, comiam sem reclamar. Eram muitos dias para essa metamorfose se completar. Ao final, a frustração: os sapinhos pulavam, mas não chegavam a crescer, pois logo morriam. E sem a interferência da menina.
Quando as primeiras chuvas caiam, as mariposas chegavam junto delas. À noite, a casa era invadida por uma multidão desses insetos, que giravam em torno das lâmpadas. A menina catava algumas, que ao serem tocadas perdiam as asas. Então, a menina as colocava num vidro de maionese cheio de terra molhada e fofa. As mariposas começavam a cavar, tentado formar um formigueiro. Eram túneis e mais túneis que, quando próximos as bordas, mostravam o trabalho incansável das futuras rainhas. Mas a menina nunca viu o fim do trabalho. Ela não sabe o motivo, mas as mariposas morriam. Devia ser falta de água e comida. Não conseguiu descobrir o que esses bichinhos gostavam para poder alimentá-los.
O quarto de menina era cheio de vidros de álcool com milhares de insetos de todos os tipos, uma coleção de pedras e outra de areia de todas as cores, além da coleção de borboletas, que caçava com uma armação de arame e tule, no formato de uma biruta de aeroporto, na Praça de Esportes. O que mais chamava atenção nesse quarto de cheiros estranhos e nada cor-de-rosa era uma cabeça de burro, parte superior e mandíbula, que ela tinha pegado na beira de um rio, toda descarnada. Trouxe para casa e ficou uma tarde de domingo inteirinha lavando com escova e sapólio esse monumento. Muita gente teria medo do azar da tal cabeça, não a menina nunca foi de crendices. Acumulava essas coisas esquisitas, por vezes bizarras, mas, ao lado dos estudos de História Natural na Enciclopédia Conhecer, na casa do avô, não pensava em medos.
Quem visse essa menina, nessa mania que durou muitos anos, da terceira infância até a adolescência, poderia imaginar que ela seria uma naturalista, feito Charles Darwin, gênio muito admirado por ela, e por todos, ou até mesmo uma bióloga, mas ela desapontou todo mundo que pensou nisso. Bobagem tentar adivinhar quem será o quê! Acabou médica, jornalista e escritora.
*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-
Interessante conhecer esta sua metamorfose, Doutora. A ciência há de explicar. Nós, seus leitores, agradecemos! Abraços e parabéns pelo texto.
ResponderExcluirMarcelo, os meus irmãos não gostavam dessas coisas e eu ali firme, incansável por anos e anos, pelo menos uns dez anos. Depois vieram a preparação para o vestibular, a medicina e suas aulas de Anatomia. Em vez de bicho, gente. Obrigada por comentar.
ResponderExcluirUm relato interessante, embora o trecho em que fala das borboletas tenha me doído.
ResponderExcluirO meu sonho é ver meu quintal cheio delas.
Ótimo texto.
Abraços
Admirei sua coragem! Que mulher é essa que não temes bichos e insetos que arrancam grintinhos histéricos da maioria das mulheres? Pra ler sua crônica, tive que deixar a ilustração encoberta e não me acalenta nem um pouco saber que largatas vêm das borboletas!
ResponderExcluirLinda sua história! De arrepiar em vários sentidos...Rss
Núbia, eu passava horas correndo atrás das borboletas no Montes Claros Tênis Clube, com um pegador de borboletas feito por mim, com um arame e um filó. A maioria era amarela. Quando a capturava, colocava dentro de um vidro com éter, e ela desmaiava. Então eu a colocava pregada no isopor. Hoje é proibido fazer isso, mas há quase 50 anos, era permitido.
ResponderExcluirMarleuza, falando em coragem, faço um aparte. Uma vez, no colégio, uma rapaz corria atrás das meninas fingindo que jogaria nelas um morcego. Era uma gritaria geral. Até já contei esse caso aqui.Quando ele veio pra cima de mim, tomei dele o mamífero, rasguei o pobre, e o joguei no ex-dono do animal. Covardia? Sim, dele e minha, que maltratei o bicho. Mas antes eramos assim: eu a lei.
ResponderExcluir