Preconceito
* Por Rubem Costa
Assisto pela televisão à cena odienta: soldado judeu a dançar grotesco e desdenhoso em torno de uma assustada mulher árabe acuada — para degradá-la. Quadro deprimente que põe a lume a marca atávica de um conflito de raças, onde o preconceito impera como traço dominante do ser que, olhando em torno de si, supõe desprezível tudo que não seja desenhado à sua imagem e semelhança. Retrato imemorial do homem que, desde a caverna, traz consigo a presunção de superioridade que gera desprezo, agride e humilha. Caminho de desamor que destrói no ser o sentido humano da vida.
Foi por essa trilha que, ao avesso do degradante episódio acima descrito, se arrastou o mais doloroso drama pessoal do século 19 — o conhecido caso Dreyfus — que em crônica recente relembrei aqui, retraçando a tragédia de um homem (oficial de pequena patente do exército francês) apodado de traidor da pátria e condenado, sem provas, ao desterro na Ilha do Diabo, pela eventual circunstância de trazer na etnia o sangue semita. Uma condenação à margem do bom senso que Zola profligou no célebre — J’Acuse — publicado no jornal L´Aurore, desvendando a farsa armada pelo exército na ânsia de preservar da culpa o comprometido alto comando francês. Trama que violentava a verdade e o bom senso, mas que foi aceita como verídica, simplesmente, porque o acusado — Alfred Dreyfus — era descendente de judeus e os generais eram cristãos. Os juizes eram cristãos. E o povo era cristão. Terrível conluio de cristianização que levou também o próprio Zola a ser condenado ao exílio na Inglaterra pela coragem de denunciar a farsa que afrontava a dignidade humana. Uma derivação do triste jogo do toma lá, dá cá, que põe peças múltiplas no tabuleiro de xadrez das convenções: rei, rainha, torres, bispos, cavalos e peões em lances que se alternam e sucedem em busca da surpresa final — o xeque-mate contra o desigual.
Preconceito de raça e religião.
Concepção irrefletida que, no refluxo do tempo, por capricho da história transmuda o judeu discriminado em discriminador, tal como aparece no episódio bíblico da Fonte de Jacó descrito no Novo Testamento pelo evangelista João:
— “Jesus, cansado do caminho, assentou-se junto à fonte. Era quase à hora Sexta. Veio uma mulher de Samaria tirar água; disse-lhe Jesus: — dá-me de beber. Porque os discípulos tinham ido à cidade comprar comida.
Disse-lhe a mulher samaritana: — como sendo tu judeu, me pedes de beber a mim que sou mulher samaritana. (porque os judeus não se comunicavam com os samaritanos).
E nisto, vieram os discípulos de Jesus e se maravilharam de que ele estivesse falando com a mulher.”
Intencionalmente, transcrevo in litteris o texto bíblico (João, cap. 4, versículos 7, 8, 9 e 27), para por em relevo a tangência das linhas convergentes que demonstram o desprezo que os judeus, por sua vez, impulsionados pela aversão racial, votavam aos habitantes de Samaria, cidade da antiga Palestina, fundada por assírios, oitocentos e vinte anos antes de Cristo. Os samaritanos eram assim tidos como estrangeiros desprezíveis.
Ironia. O texto, concebido para enaltecer o amor divino, termina por desnudar o desamor do homem, pondo à superfície o preconceito que machuca e destrói. É trágico porque, no caso vertente, massacrado pela pressão do clã dominante, o grupo mais fraco se deixa abater e encolhe-se humilhado, sacrificando a própria dignidade. Assim, diz a mulher a Cristo: — “Como sendo tu judeu, pedes de beber a mim que sou (leia-se: insignificante) mulher samaritana?”
É a admiração de quem se encanta pelo fato de o superior se dignar de lhe lançar uma palavra de consideração. É a parte hedionda do preconceito: a dilapidação que leva o ser à escala última de si mesmo — a autodepreciação.
Surpreendente é que da avassalante discriminação não tenham sabido desvencilhar-se nem mesmo os discípulos de Cristo, homens que, escolhidos para serem pescadores de alma, deveriam estar edificados pelo amor ao próximo. Eis que, tomando por referência atradução mais conhecida da Bíblia, feita pelo padre Almeida, pressente-se que o evangelista, ao dizer que eles, os discípulos, se maravilharam de ver Cristo falando com uma mulher, usou de um eufemismo, para não declarar que haviam ficado espantados (boquiabertos) com o fato escandaloso, visto ser quase inadmissível pudesse um judeu rebaixar-se a ponto de dar atenção a uma plebeia.
Não é de surpreender. Os povos — e as religiões, todas — estão repletos de farisaísmo que estimula o preconceito. E, para exemplo, aí está de novo a França. O presidente Nicolas Sarkozy acaba de proibir o uso de símbolos religiosos em locais públicos — bulca islâmica, kipá judaica e (para disfarçar) crucifixos ostensivos. Um ato político que gera ódio e abre sulco para a tirania com a agressão ao ideal mais caro de um povo — o estado de direito — fundamento da democracia que a própria França consagrou na divisa: liberté, égalité, fraternité.
* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
Assisto pela televisão à cena odienta: soldado judeu a dançar grotesco e desdenhoso em torno de uma assustada mulher árabe acuada — para degradá-la. Quadro deprimente que põe a lume a marca atávica de um conflito de raças, onde o preconceito impera como traço dominante do ser que, olhando em torno de si, supõe desprezível tudo que não seja desenhado à sua imagem e semelhança. Retrato imemorial do homem que, desde a caverna, traz consigo a presunção de superioridade que gera desprezo, agride e humilha. Caminho de desamor que destrói no ser o sentido humano da vida.
Foi por essa trilha que, ao avesso do degradante episódio acima descrito, se arrastou o mais doloroso drama pessoal do século 19 — o conhecido caso Dreyfus — que em crônica recente relembrei aqui, retraçando a tragédia de um homem (oficial de pequena patente do exército francês) apodado de traidor da pátria e condenado, sem provas, ao desterro na Ilha do Diabo, pela eventual circunstância de trazer na etnia o sangue semita. Uma condenação à margem do bom senso que Zola profligou no célebre — J’Acuse — publicado no jornal L´Aurore, desvendando a farsa armada pelo exército na ânsia de preservar da culpa o comprometido alto comando francês. Trama que violentava a verdade e o bom senso, mas que foi aceita como verídica, simplesmente, porque o acusado — Alfred Dreyfus — era descendente de judeus e os generais eram cristãos. Os juizes eram cristãos. E o povo era cristão. Terrível conluio de cristianização que levou também o próprio Zola a ser condenado ao exílio na Inglaterra pela coragem de denunciar a farsa que afrontava a dignidade humana. Uma derivação do triste jogo do toma lá, dá cá, que põe peças múltiplas no tabuleiro de xadrez das convenções: rei, rainha, torres, bispos, cavalos e peões em lances que se alternam e sucedem em busca da surpresa final — o xeque-mate contra o desigual.
Preconceito de raça e religião.
Concepção irrefletida que, no refluxo do tempo, por capricho da história transmuda o judeu discriminado em discriminador, tal como aparece no episódio bíblico da Fonte de Jacó descrito no Novo Testamento pelo evangelista João:
— “Jesus, cansado do caminho, assentou-se junto à fonte. Era quase à hora Sexta. Veio uma mulher de Samaria tirar água; disse-lhe Jesus: — dá-me de beber. Porque os discípulos tinham ido à cidade comprar comida.
Disse-lhe a mulher samaritana: — como sendo tu judeu, me pedes de beber a mim que sou mulher samaritana. (porque os judeus não se comunicavam com os samaritanos).
E nisto, vieram os discípulos de Jesus e se maravilharam de que ele estivesse falando com a mulher.”
Intencionalmente, transcrevo in litteris o texto bíblico (João, cap. 4, versículos 7, 8, 9 e 27), para por em relevo a tangência das linhas convergentes que demonstram o desprezo que os judeus, por sua vez, impulsionados pela aversão racial, votavam aos habitantes de Samaria, cidade da antiga Palestina, fundada por assírios, oitocentos e vinte anos antes de Cristo. Os samaritanos eram assim tidos como estrangeiros desprezíveis.
Ironia. O texto, concebido para enaltecer o amor divino, termina por desnudar o desamor do homem, pondo à superfície o preconceito que machuca e destrói. É trágico porque, no caso vertente, massacrado pela pressão do clã dominante, o grupo mais fraco se deixa abater e encolhe-se humilhado, sacrificando a própria dignidade. Assim, diz a mulher a Cristo: — “Como sendo tu judeu, pedes de beber a mim que sou (leia-se: insignificante) mulher samaritana?”
É a admiração de quem se encanta pelo fato de o superior se dignar de lhe lançar uma palavra de consideração. É a parte hedionda do preconceito: a dilapidação que leva o ser à escala última de si mesmo — a autodepreciação.
Surpreendente é que da avassalante discriminação não tenham sabido desvencilhar-se nem mesmo os discípulos de Cristo, homens que, escolhidos para serem pescadores de alma, deveriam estar edificados pelo amor ao próximo. Eis que, tomando por referência atradução mais conhecida da Bíblia, feita pelo padre Almeida, pressente-se que o evangelista, ao dizer que eles, os discípulos, se maravilharam de ver Cristo falando com uma mulher, usou de um eufemismo, para não declarar que haviam ficado espantados (boquiabertos) com o fato escandaloso, visto ser quase inadmissível pudesse um judeu rebaixar-se a ponto de dar atenção a uma plebeia.
Não é de surpreender. Os povos — e as religiões, todas — estão repletos de farisaísmo que estimula o preconceito. E, para exemplo, aí está de novo a França. O presidente Nicolas Sarkozy acaba de proibir o uso de símbolos religiosos em locais públicos — bulca islâmica, kipá judaica e (para disfarçar) crucifixos ostensivos. Um ato político que gera ódio e abre sulco para a tirania com a agressão ao ideal mais caro de um povo — o estado de direito — fundamento da democracia que a própria França consagrou na divisa: liberté, égalité, fraternité.
* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
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