sábado, 20 de agosto de 2011







Menininha

* Por Mariella Augusta


Ela ia caindo, caindo, caindo...solta no ar. Como nunca houvera caído, não sabia como cair. Mas isto não era coisa para se preocupar, pois estava privada de qualquer poder. Ia sentindo o vento balouçá-la como uma cantiga de ninar que a levava ao sono.

O sono era aquela coisa desconhecida de que ouvira falar, mas tão entretida estava com a brisa, o orvalho e o dia, que não se dera conta. As outras lá em cima entretinham-se agora com a sua queda. Estavam apiedadas como se a queda não lhes fosse inerente. Como ela esteve um dia.

Mas agora era hora de cair. Logo que nascera, logo nos primeiros momentos, não sabia o que era cair. Sabia que era de certa forma perder a beleza. Perder a integridade. Mas era muito nova. Agora, na inexatidão do vento, perplexa, sabia.

Isto porque chegava à conclusão. Havia desfrutado o todo. Criaturas aladas repousaram no seu limbo, conhecera o silêncio da alvorada, sentira o gozo da manhã escorrendo por seu corpo preguiçoso e temera a escuridão de cada noite. E, embora parecesse estar se preparando, não compreendia o golpe, porque amara o que vira.

Desejava entrelaçar-se às outras como crianças correm para os colos das mães nas grandes tempestades. Não queria estar lá tão só. Na pior das solidões. As outras estavam lá em cima também sozinhas, mas sozinhas de uma solitude que se preenche, que vai colhendo encantos. Sua queda mesmo representava tais encantos. Ter piedade nos cerca de uma certa beleza, nos protege do olhar que olha para dentro.

Um pouco mais de amor talvez lhe tivesse aumentado a importância. Mas estavam todos tão plenos, tão cheios de suas chuvas e de seus luares, que para tanto seriam necessárias muitas coincidências na trama dos desencontros. Ficou muito difícil se ceder. A única coisa que lhe restou deles foi o pecíolo, mas dela não ficou nada. Ou melhor – um leve orifício que não chegava a tocar o coração. Um lugar a ser recuperado para continuar de par com o sol a fazer aquela elaboração perfeita, alimentando o caos que nunca se perfaz, que nunca se basta.

Ia caindo... caindo e lá embaixo a dureza roxa era uma imensidão devoradora. De repente parou. Logo os pequenos seres arrastaram-na para a esquartejar sob a terra fria.


(Do livro “O Fio de Cloto”)

* Bacharel em Direito, mestranda da FFLCH (USP), escritora, autora de “O Fio de Cloto”, livro de contos prefaciado por Bruno Fregni Basseto, grande filólogo e vencedor do Prêmio Jabuti. Publicou crônicas no “Jornal das Artes” e artigos em várias revistas acadêmicas.

Um comentário: