A essência do mundo
Destaco, hoje, outro poeta mineiro que, no meu entender, não teve o sucesso que merece, pela excelência da sua obra. Embora seus poemas devessem constar, pelos seus méritos literários, nas melhores antologias poéticas (senão em todas), é conhecido, somente, num círculo bastante restrito de artistas e de intelectuais. Trata-se de Ruy Apocalypse, autor, entre outros, dos livros “Crônicas da Noite” (Massao Ohno Editora, 1960), “Papoula dos Sete Reinos” e “Realejo de Minas”.
As metáforas de que se utiliza são originalíssimas e muito bem colocadas. Seus poemas destacam-se, sobretudo, pelo ritmo, pela musicalidade latente, pela espontaneidade. É difícil destacar qualquer deles, dos seus três livros mais conhecidos, pois todos têm qualidade superior. No entanto, em nenhuma seleção da sua obra, este “Crônica V – Do Criador e Suas Raízes”, pode ficar de fora. Entendam o por quê:
“Nesta argila, plasmada no silêncio,
formei teu braço esquerdo, de mentiras.
Das árvores, roubei os galhos mansos
para cobrir teu corpo e tuas iras.
Mulher, além do sal, além do espelho,
és. E rios te cortam. E, nas águas,
há braços de mil náufragos brilhando,
como espadas tebanas! Como espadas!
O rio que te clama, fez-te fonte,
o espelho que te adora fez-te lua.
Para cobrir teu rosto (céu das iras)
eu me deixo ficar, no teu enigma,
como um pastor, dormindo sobre o monte,
sonhado pelo azul, em sons de lira”.
Diante dessa fonte de ternuras, de onde jorra tamanha emoção, não se pode deixar de dar razão, por exemplo, à escritora Edith Sitwell quando afirma: “Como Moisés, o poeta vê Deus na sarça ardente, quando o olho físico, míope ou mal aberto, só vê um jardineiro queimando folhas”. E vislumbra mais, muito mais do que isso. Vê a essência das coisas. Percebe o que há de perpétuo no aparentemente efêmero e banal. Seu talento vale-se de um filtro mágico que extrai beleza do que é, aparentemente, disforme, feio, horrendo. Onde todos vêem, apenas, uma poça de água suja, vislumbra o firmamento, a lua e as estrelas.
Outro poema de Apocalypse que me impressionou bastante é este “Crônica VIII – Da Transfiguração Necessária”. Compartilho-o com prazer, com o leitor de bom-gosto:
“Que as horas chorem fora das vidraças,
construindo seus musgos sobre os mastros
de velhos casarios alumbrados
e derradeiras praças penitentes.
Que os bairros mais burgueses alinhavem
suas rendas de chá, em velhas xícaras.
Que o sono seja grande e seja amargo
aos que amaram o amor, perdendo a sorte...
para que tudo nasça das idéias
que os ventos espalharam nas migalhas
de luzes e de carnes assombradas.
Do amanhã, outras vozes serão vindas;
e do agora, outros céus serão nascidos,
além do olhar das lâmpadas caídas”.
Ruy Apocalypse comprova, como afirmei, que o poeta não tem o mínimo pudor em desnudar seus sentimentos e emoções em público, neste magnífico poema “Costas de meu ser”:
Em mim eu pouco estou porque não quero
surgir em meio a dor, nuzinho em pêlo.
Hoje, curvado venho ao que eu espero
achar dentro do corpo, para crê-lo.
Rasguei os envelopes. Fui sincero.
Perdi os compromissos, mais o selo
da carta do que sou, no que me gero,
cada noite sem ar, pelo degelo.
Pouco me leio. Pouco me carteio.
Com o que fui por culpa de meus muros.
Perdi-me sem resposta nos escuros.
Em mim eu pouco estou. Tenho receio
de chegar a meus quartos e de ler
linha por linha, as costas de meu ser.
Interessantes, também, são seus versos curtos, quase aforismos, repletos de lirismo e de beleza, como este poema “Taça da manhã”:
Estouram flores
Na garrafa das árvores
--- Há borbulhas de aves
na taça da manhã.
Ou como este “Rodas do sol”:
Velocípedes vermelhos
pedalam, pedalam,
com as rodas do sol.
Ou como este “Cordas de luz”:
E na sanfona do dia,
crianças sonoras
pulam cordas de luz!
Boa leitura
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Destaco, hoje, outro poeta mineiro que, no meu entender, não teve o sucesso que merece, pela excelência da sua obra. Embora seus poemas devessem constar, pelos seus méritos literários, nas melhores antologias poéticas (senão em todas), é conhecido, somente, num círculo bastante restrito de artistas e de intelectuais. Trata-se de Ruy Apocalypse, autor, entre outros, dos livros “Crônicas da Noite” (Massao Ohno Editora, 1960), “Papoula dos Sete Reinos” e “Realejo de Minas”.
As metáforas de que se utiliza são originalíssimas e muito bem colocadas. Seus poemas destacam-se, sobretudo, pelo ritmo, pela musicalidade latente, pela espontaneidade. É difícil destacar qualquer deles, dos seus três livros mais conhecidos, pois todos têm qualidade superior. No entanto, em nenhuma seleção da sua obra, este “Crônica V – Do Criador e Suas Raízes”, pode ficar de fora. Entendam o por quê:
“Nesta argila, plasmada no silêncio,
formei teu braço esquerdo, de mentiras.
Das árvores, roubei os galhos mansos
para cobrir teu corpo e tuas iras.
Mulher, além do sal, além do espelho,
és. E rios te cortam. E, nas águas,
há braços de mil náufragos brilhando,
como espadas tebanas! Como espadas!
O rio que te clama, fez-te fonte,
o espelho que te adora fez-te lua.
Para cobrir teu rosto (céu das iras)
eu me deixo ficar, no teu enigma,
como um pastor, dormindo sobre o monte,
sonhado pelo azul, em sons de lira”.
Diante dessa fonte de ternuras, de onde jorra tamanha emoção, não se pode deixar de dar razão, por exemplo, à escritora Edith Sitwell quando afirma: “Como Moisés, o poeta vê Deus na sarça ardente, quando o olho físico, míope ou mal aberto, só vê um jardineiro queimando folhas”. E vislumbra mais, muito mais do que isso. Vê a essência das coisas. Percebe o que há de perpétuo no aparentemente efêmero e banal. Seu talento vale-se de um filtro mágico que extrai beleza do que é, aparentemente, disforme, feio, horrendo. Onde todos vêem, apenas, uma poça de água suja, vislumbra o firmamento, a lua e as estrelas.
Outro poema de Apocalypse que me impressionou bastante é este “Crônica VIII – Da Transfiguração Necessária”. Compartilho-o com prazer, com o leitor de bom-gosto:
“Que as horas chorem fora das vidraças,
construindo seus musgos sobre os mastros
de velhos casarios alumbrados
e derradeiras praças penitentes.
Que os bairros mais burgueses alinhavem
suas rendas de chá, em velhas xícaras.
Que o sono seja grande e seja amargo
aos que amaram o amor, perdendo a sorte...
para que tudo nasça das idéias
que os ventos espalharam nas migalhas
de luzes e de carnes assombradas.
Do amanhã, outras vozes serão vindas;
e do agora, outros céus serão nascidos,
além do olhar das lâmpadas caídas”.
Ruy Apocalypse comprova, como afirmei, que o poeta não tem o mínimo pudor em desnudar seus sentimentos e emoções em público, neste magnífico poema “Costas de meu ser”:
Em mim eu pouco estou porque não quero
surgir em meio a dor, nuzinho em pêlo.
Hoje, curvado venho ao que eu espero
achar dentro do corpo, para crê-lo.
Rasguei os envelopes. Fui sincero.
Perdi os compromissos, mais o selo
da carta do que sou, no que me gero,
cada noite sem ar, pelo degelo.
Pouco me leio. Pouco me carteio.
Com o que fui por culpa de meus muros.
Perdi-me sem resposta nos escuros.
Em mim eu pouco estou. Tenho receio
de chegar a meus quartos e de ler
linha por linha, as costas de meu ser.
Interessantes, também, são seus versos curtos, quase aforismos, repletos de lirismo e de beleza, como este poema “Taça da manhã”:
Estouram flores
Na garrafa das árvores
--- Há borbulhas de aves
na taça da manhã.
Ou como este “Rodas do sol”:
Velocípedes vermelhos
pedalam, pedalam,
com as rodas do sol.
Ou como este “Cordas de luz”:
E na sanfona do dia,
crianças sonoras
pulam cordas de luz!
Boa leitura
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Interessante. Gostei da análise de Edith Sitweel: "Percebe o que há de perpétuo no aparentemente efêmero e banal." Quem dera conseguíssemos fazer isso no dia a dia. Seríamos excelente escritores.
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