Doces bobagens
* Por Ana Flores
* Por Ana Flores
Na imortal canção These foolish things, a também imortal Billie Holiday descreve pequenas coisas que a fazem lembrar-se do amado: um cigarro apagado no cinzeiro, uma passagem aérea sugerindo uma viagem romântica, um telefone tocando sem ninguém responder e outras mais. Com sua voz-quase-um-miado, intensa e suave ao mesmo tempo, Lady Day canta como ninguém e nos arrasta com ela através de lembranças, das quais Roberto Carlos também fala quando se refere a “detalhes tão pequenos de nós dois”.
As lembranças e os detalhes podem variar; o que não varia é o fato de que dificilmente haverá alguém que não guarde uma flor murcha, um bilhete já meio amarelado, o desenho de um filho pequeno que virou adulto e que também guarda os desenhos de seus filhotes. Mesmo um aroma especial que nos faz viajar até o quintal da antiga casa dos avós ou a um certo hotel plantado na neve. A lista é infinita e subjetiva. De mecha de cabelo a dente-de-leite e umbigo de recém-nascido, passando pela rolha do primeiro champanhe ou do vinho do jantar especial, vale tudo no baú de memórias e ninguém precisa explicar o às vezes inexplicável. “Mas por que você guarda isso ?” E por que não? O supérfluo e bobo para uns pode ser, para quem o guarda, a peça-chave de uma grande história pessoal e intransferível.
Nem os iluminados escapam. Numa entrevista, a escritora Ana Maria Machado disse que suas histórias nascem não só de sua imaginação, mas de lembranças pessoais. Manuel Bandeira, ao escrever seu poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, apenas abriu a porta de suas lembranças do tempo de colégio, quando conheceu a palavra mágica numa tradução que fazia do grego. Tinha, então, quinze anos, mas seu poema só foi acontecer trinta anos depois. Se o nome encantado dessa cidade persa não estivesse gravado no seu baú particular, os leitores de Bandeira nunca teriam conhecido o itinerário para o lugar perfeito. Para a poeta mineira Adélia Prado, “o que a memória amou fica eterno” e o escritor Rubem Alves, também mineiro, diz que sua alma “é um bolso onde guardo minhas memórias vivas”.
Portanto, nós, pobres mortais, estamos em boa companhia. Um papel desenhado distraidamente pelo rapaz e arquivado na agenda da menina apaixonada; o guardanapo da lanchonete com a mancha de um certo batom ou a simples tampinha de uma Bic, mordida e quase destroçada por aquele colega especial e inesquecível podem significar que sim, somos todos normais. Billie Holiday, Roberto Carlos e outros acima de qualquer suspeita também têm lembranças que às vezes se dignam a compartilhar com o resto do mundo. As menos doces e as amargas, por favor, desocupem esse espaço nobre e façam boa viagem. Tem muita coisa boa na fila, esperando para se juntar, no baú da memória, às nossas doces bobagens.
• Escritora
As lembranças e os detalhes podem variar; o que não varia é o fato de que dificilmente haverá alguém que não guarde uma flor murcha, um bilhete já meio amarelado, o desenho de um filho pequeno que virou adulto e que também guarda os desenhos de seus filhotes. Mesmo um aroma especial que nos faz viajar até o quintal da antiga casa dos avós ou a um certo hotel plantado na neve. A lista é infinita e subjetiva. De mecha de cabelo a dente-de-leite e umbigo de recém-nascido, passando pela rolha do primeiro champanhe ou do vinho do jantar especial, vale tudo no baú de memórias e ninguém precisa explicar o às vezes inexplicável. “Mas por que você guarda isso ?” E por que não? O supérfluo e bobo para uns pode ser, para quem o guarda, a peça-chave de uma grande história pessoal e intransferível.
Nem os iluminados escapam. Numa entrevista, a escritora Ana Maria Machado disse que suas histórias nascem não só de sua imaginação, mas de lembranças pessoais. Manuel Bandeira, ao escrever seu poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, apenas abriu a porta de suas lembranças do tempo de colégio, quando conheceu a palavra mágica numa tradução que fazia do grego. Tinha, então, quinze anos, mas seu poema só foi acontecer trinta anos depois. Se o nome encantado dessa cidade persa não estivesse gravado no seu baú particular, os leitores de Bandeira nunca teriam conhecido o itinerário para o lugar perfeito. Para a poeta mineira Adélia Prado, “o que a memória amou fica eterno” e o escritor Rubem Alves, também mineiro, diz que sua alma “é um bolso onde guardo minhas memórias vivas”.
Portanto, nós, pobres mortais, estamos em boa companhia. Um papel desenhado distraidamente pelo rapaz e arquivado na agenda da menina apaixonada; o guardanapo da lanchonete com a mancha de um certo batom ou a simples tampinha de uma Bic, mordida e quase destroçada por aquele colega especial e inesquecível podem significar que sim, somos todos normais. Billie Holiday, Roberto Carlos e outros acima de qualquer suspeita também têm lembranças que às vezes se dignam a compartilhar com o resto do mundo. As menos doces e as amargas, por favor, desocupem esse espaço nobre e façam boa viagem. Tem muita coisa boa na fila, esperando para se juntar, no baú da memória, às nossas doces bobagens.
• Escritora
Nenhum comentário:
Postar um comentário