sexta-feira, 19 de agosto de 2011







A história viva dos anos da ditadura

* Por Urariano Mota

O livro “68 a geração que queria mudar o mundo” é um calhamaço de 690 páginas que, em vez de assustar pelo peso e volume, deixa em toda a gente um fascínio. Explico, ou tento explicar. De agora em diante, ele será um volume de consulta obrigatória, para que não se cometam mais tantos atentados à história e à verossimilhança em telenovelas, peças e filmes no Brasil, quando o assunto for ditadura.
Organizado por Eliete Ferrer, publicado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, no livro participam 100 autores em 170 relatos. Em mensagem coletiva no grupo da internet “os amigos de 68”, Eliete informa que nele se encontram “histórias reais ocorridas desde 1964 até a abertura política - nas reuniões, na militância, nas manifestações, nas discussões, na prisão, nas ações armadas ou não, nos treinamentos, na clandestinidade, no Brasil ou no exterior, no exílio. O diferencial do nosso livro caracteriza-se pela revelação do lado humano e afetivo daqueles que não aceitaram a prepotência do Golpe de 64, concebido e engendrado nos Estados Unidos”.

De fato, se em alguns relatos individuais as angústias e o heroísmo de militantes socialistas nem sempre se acham realçados, na maioria dos textos e no seu quadro geral se depreende uma história rica da vida de jovens, de homens e mulheres na última ditadura, que, setores à direita queiram ou não, está na agenda do mundo político do Brasil. O livro vem numa luta que exige resposta da civilização brasileira aos assassinatos até hoje encobertos. Mais precisamente, na batalha incansável dos familiares dos mortos que continuam a busca dos corpos dos filhos, pais e irmãos. “68 a geração que queria mudar o mundo” é parte ativa da consciência do país que deseja uma punição exemplar para crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis por todas as convenções internacionais do Direito.
O melhor e mais agradável em “68 a geração que queria mudar o mundo” é que ele não é um volume de teses. Em seu conjunto lêem-se relatos plenos de frescor, isso quer dizer, de sangue vivo, da hora, recuperado com o frescor da memória. É um livro necessário, porque nele estão as chamadas fontes primárias, as pessoas fora dos arquivos, contando o que viveram, penaram ou mesmo imaginaram nos anos do terror da ditadura brasileira. Delas vêm os documentos primários da luta dos malditos anos. É um livro urgente, para ser lido e divulgado.
Nele hão de se debruçar historiadores, roteiristas, cineastas, teatrólogos e jovens de todo o gênero e escolas para que compreendam o mundo que ainda lhes é desconhecido, de pessoas iguais a eles, que viveram, morreram ou escaparam por um triz, em situação-limite. São relatos da vida clandestina, de acontecimentos inimagináveis de “expropriações revolucionárias”, ou como a repressão as chamava, de assaltos a bancos por terroristas. Histórias de treinamento de guerrilha no Brasil, um documento vivo e inédito, e de amor, do amor que sobrevivia entre as porradas e tensões.
O curioso, para muitos, é que nele há também lugar para o humor, pois que os tempos eram duríssimos, mas os homens além do terror e crimes sofridos, também possuíam ou procuravam motivos para rir. Como neste caso, digno de Stanislaw Ponte Preta, o grande humorista que desmontou o ridículo da ditadura brasileira. Copio trecho do depoimento de Emílio Myra e Lopez:
“Um colega seu de ofício (do advogado Lino Ventura) defendia uma mulher e durante o seu processo ocorre o fato, verídico e registrado em seus autos. O advogado de sua defesa inquire o sargento, sua testemunha de acusação.
- Senhor sargento, por que o senhor acusa minha cliente de ser subversiva?
- Pelo material apreendido em sua casa – responde.
- Mas, especificamente, que material?
- Umas cartas...
O advogado prossegue.
- Sargento, seriam estas castas, às quais se refere?
- Sim, senhor, são estas cartas.
- Mas sargento, estas cartas estão escritas em idioma francês, o senhor tem conhecimento do idioma francês?
- Não senhor – responde o sargento para espanto e risos no plenário.
Insiste o advogado.
- Senhor sargento, se o senhor não conhece o idioma francês, como pode, por estas cartas, acusar minha cliente de ser subversiva?
- Mas é claro – prossegue convicto o sargento – eu li nas entrelinhas”.
Há outros, muitos outras histórias, casos, depoimentos, poemas, entre o drama, o trágico e a comédia. Há pelo menos 169 outros relatos. Mas tenham pena deste digitador. Leiam o livro.
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Agenda de lançamentos:

24 de agosto – Brasília , no Ministério da Justiça

25 ou 26 de agosto – Porto Alegre

15 de setembro – Rio de Janeiro – ALERJ

24 de setembro – São Paulo – Memorial da Resistência

30 de setembro – Recife

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

2 comentários:

  1. Para muitos será uma brecha na escuridão.
    Depoimentos que elucidam e corroboram
    fatos que alguns não querem enxergar.
    Em tempos de ditadura o cinza predominava no arco íris.
    Boa pedida.
    Abraços

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  2. Eu descobri toda a ruína da ditadura em 1980. A descoberta tardia me impulsionou a postar-me a esquerda do espectro político. A minha indignação foi extrema. No seu comentário também há espaço para o riso: "tenham pena deste digitador". Pretendo ler o livro, mas embora os crimes não prescrevam, ainda penso que o melhor é não haver retaliações. Após a leitura, posso humildemente mudar de ideia.

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