quarta-feira, 24 de agosto de 2011







Catopês: Mestre João Farias e o seu mundo de sonho

* Por Mara Narciso


Vem de longe o batuque de tambores, parecendo um lamento distante. São os catopês que sobem a Rua Dr. Santos numa tarde de agosto. A tradição rompe décadas, não pode parar, e sempre pede socorro. São muitas as necessidades desse grupo folclórico reunido em três ternos em Montes Claros. Além deles há um terno de caboclinhos e dois de marujos.
O norte de Minas comemora em agosto a fé em Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e no Divino Espírito Santo. De maneiras similares grupos se constituem para saudar os santos da devoção com danças, cantorias e representações como levantamento de mastro, desafios entre porta bandeiras e disputa de espadas. Os caboclinhos com saiotes de penas representam os índios, os catopês com roupas brancas são os negros, e os marujos cristãos vestidos de azul e os marujos mouros de vermelho lembram os portugueses. Há ainda a corte representando o rei, rainha, príncipes e princesas. Reza a lenda que tudo começou como imitação da posse de Dom Pedro II, em 1840.
João Farias, de 67 anos, é mestre de catopês do Segundo Terno de Nossa Senhora do Rosário há 49 anos. O seu pai José Soares Farias era caixeiro de frente dos catopês, e em todas as suas lembranças a presença dos chamados dançantes e depois catopês é marcante.
Explica que no comando há dois homens, um é procurador e o outro mestre. Quando João Farias tinha 17 anos o terno se desfez por desentendimento entre eles. Então, recebeu de Marquinhos, um componente, o patrimônio do grupo, uns poucos instrumentos de percussão. Houve uma eleição por aclamação, já que é preciso que todos concordem. Tão jovem, dominava os segredos dos rituais do terno, sabendo como se comportar, quais músicas entoar ao entrar ou sair de uma casa. Para cada situação são necessários uma música e comportamento próprios. “É preciso ter conhecimento”, diz João Farias. A chefia exige comando, liderança, saber a sequência do que aconteceu na cerimônia e o que ainda vai acontecer. Não deixar dispersar após uma apresentação, por exemplo, pois pode ser impossível reunir o grupo para continuar.
O Segundo Terno de Nossa Senhora do Rosário, hoje com 50 componentes, dos quais dois netos de João Farias, recebe convites para se apresentar fora de Montes Claros. Admite o preconceito, pois não aceitam mulheres. Sentem-se felizes e recompensados, porque, embora cada um tenha a sua profissão, é em agosto que acontece a transformação. É quando se sente muita alegria.
Após colocar a vestimenta branca de catopê, com seu capacete bordado encimado com penas de pavão, com as fitas coloridas indo quase ao chão, e a faixa azul, trespassada no peito, da cor do manto da santa, acontece um milagre, entre muitos. “Nossa Senhora do Rosário cura pessoas. É só pedir, que acontece”, afirma João Farias. Os catopês sabem que a fé precisa ser inabalável. Durante o ritual das celebrações os rostos estão sérios, compenetrados, mas por dentro é só festa.
A ajuda dos políticos chegou para multiplicar a comemoração. Para João Farias, as pessoas envolvidas nos rituais não questionam a ajuda e nem a invasão. Todos são bem-vindos e nem mesmo as luzes das filmagens durante a elevação do mastro quebram a mágica do ritual.
Vestido a caráter, em sua casa, a nosso pedido, coloca o capacete de penas e bordados e vai abrir o quarto onde esconde os seus tesouros: a bandeira e os instrumentos de percussão. Foram feitos por ele mesmo, com couro de bode, dos quais toca todos, exceto o tambor. Faz a demonstração utilizando-se de um dos instrumentos, e informando o nome de cada um. O som das caixas é o mais contagiante. Satisfeito e sorridente, como uma criança com seus brinquedos, garante que jamais pensou que acontecesse tanto quanto já aconteceu. Simples, acha graça de ser visto como celebridade, e sincero, informa estar aposentado como carroceiro, mas que ainda precisa trabalhar.
Quando solicitado para ser fotografado ao lado do seu instrumento de trabalho, fica grave, olha ao longe, e mostra que não quer. São dois mundos que não devem se misturar: o do sonho e o da realidade.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

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