sexta-feira, 12 de agosto de 2011







Exílio em São Paulo

* Por Urariano Mota


O exílio aí em cima não foi de fuga à repressão da ditadura. Mas se passou naquele tempo.

Em 1978, quando me abriguei no apartamento de Rosi Campos e Calixto de Inhamuns, ambos eram atores de um grupo de teatro mambembe. E levavam vidas de artistas, à moda Van Gogh. Isso quer dizer, ali, comer arroz com ovo era um sonho de consumo. Lá na Barra Funda, almoçávamos e jantávamos salada de beterraba todos os dias, até nos domingos. Terrível.

Quando comecei a mijar roxo, fui pedir solidariedade ao dono da casa. Mas o safado do Calixto me respondeu:

- Tá vendo? Já tá fazendo efeito! Saúde...

São Paulo, naquele tempo, me ordenava muitas caminhadas sem recomendação médica e sem qualquer ideal olímpico. Pois me faltavam, em muitos e intermináveis passos, dinheiro e cara de pau pra pedir uma viagem grátis. Que cidade grande! Aqui e ali, como uma perseguição, São Paulo aparecia com a cara de churrasco grego. Às duas da tarde, na Avenida São João, havia um carrasco infame que passava afiadíssimas facas sobre a carne assada, que apesar da tarde luzia em cores de boite, estroboscópica. Com a semelhança de raios de luz de radiola wurlitzer, o churrasco grego só me lembrava as pensões de putas do Recife antigo. Mas com o hit parade das buzinas.

É natural, nesse contexto, que eu acordasse de manhã frustrado com a perspectiva de mais beterraba ao longo do dia. Então eu olhava a paisagem da janela do apartamento, lá na Barra Funda, e saudava:

- Isso é uma cidade de merda.

Ao que Calixto completava:

- E do mijo roxo.

Quando saí dali, de volta para o Recife, jurei solenemente na mesma janela, a olhar a paisagem cinza:

- Em São Paulo não passo mais nem de avião, por cima.

E passava a mão sobre o ar, para associá-la a uma asa de avião.

Assim foi, assim quis a história. Calixto hoje dirige um núcleo de dramaturgia no SBT. Rosi, que na época estagiava na Som Livre, depois virou a bruxa Morgana e hoje é atriz da Globo. Quanto a mim, cumpri o que disse: jamais passei por cima da cidade. Depois da publicação de “Soledad no Recife” em 2009, pousei em São Paulo duas vezes. Numa, para o lançamento do livro. Noutra, para abrir com Soledad um seminário na USP. Mas aí São Paulo se transformara em uma cidade aberta, civilizada, hospitaleira, grande, sem a grandeza medida em passos. São Paulo não era mais a cidade das beterrabas.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

2 comentários:

  1. Como beterraba todos os dias, mas em pequenas porções e apenas como complemento. Pior seria se você tivesse de comer xuxu. Soube que os Hare Krishnas comem xuxu diariamente. Em 1983 eu jurei sobre a cidade de Lafayete, em Minas, o mesmo que você disse sobre São Paulo. Bom saber que voltou em melhores circunstâncias e de algum modo numa volta por cima (não de avião, bem entendido). Essa metrópole monstro tem milhões de faces.E mais algumas.

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  2. De São Paulo só conheço a fama, talvez um dia...
    Detesto beterrabas e no seu lugar talvez sucumbisse...não como esse negócio de jeito nenhum. Bom saber que o seu retorno a essa cidade
    tenha sido em grande estilo.
    Abraços

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