Pó levantado e pó caído
O que mais impressiona nos “Sermões” do Padre Antonio Vieira
– além das ricas mensagens espirituais que transmitia e da forma competente e
original que utilizava para tal – era o conhecimento que mostrava ter da
natureza humana. O homem, apesar da empáfia, arrogância e prepotência dos “poderosos”
e da hipocrisia dos que vivem apenas por viver, sem perspectivas e nem
serventia nem para si mesmos (a imensa maioria), não passa de um animal como os
demais, embora muitos se considerassem e se considerem deuses. É mortal e
efêmero. E, salvo interferência do acaso, passa pelo tempo sem sequer deixar
vestígios de que um dia existiu. Veio do nada, à sua revelia, e ao nada
retornará, sem poder fazer nada para evitar.
Vieira foi direto na veia ao afirmar, em certo trecho de um
de seus mais célebres sermões(o da “Sexta-feira da Quaresma”): “Distinguimo-nos
os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó
levantado, os mortos são pó caído: os vivos são pó que anda, os mortos são pó
que jaz. Estão estas praças no verão cobertas de pó; dá um pé-de-vento,
levanta-se o pó no ar, e que faz? O que fazem os vivos, e muito vivos. Não
aquieta o pó, nem pode estar quedo; anda, corre, voa, entra por esta rua, sai
por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo
envolve, tudo perturba, tudo cega, tudo penetra, em tudo e por tudo se mete,
sem aquietar, sem sossegar um momento, enquanto o vento dura”.
E prossegue em sua sábia e realista comparação: “Acalmou o
vento, cai o pó, e onde o vento parou, ali fica, ou dentro de casa, ou na rua,
ou em cima de um telhado, ou no mar, ou no rio, ou no monte, ou na campanha.
Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós: Quia
pulveses; o vento é a nossa vida: Quia ventus est vita mea. Deu o vento,
levantou-se o pó; parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado: estes
são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: estes são os mortos. Os vivos pó,
os mortos pó; os vivos pó levantado; os mortos pó caído; os vivos pó com vento,
e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a
destinação e não há outra”. E porventura, há?! Doa o quanto doer à nossa
vaidade, à nossa empáfia e à nossa presunção: não passamos de pó, vivos ou
mortos.
Destaque-se que este sermão específico foi proferido para os
poderosos do seu tempo, ocasião em que Vieira era o capelão da Capela Real em
Lisboa. Foi dirigido, portanto, ao rei e à sua corte: os nobres, os barões, os
condes, os viscondes, portanto, aos detentores do poder. O pregador lembrou-lhes
que, no essencial, eles eram absolutamente iguais aos mais miseráveis dos
miseráveis, aos despossuídos, aos que não tinham presente e nem futuro.
Enfatizou-lhes que eram pó, como outro ser humano qualquer. Com o tempo, a
despeito de todo o poder temporal que ostentavam, seriam esquecidos em um
milênio ou muito menos, como tantos outros o foram, são e serão. Isso, se a
espécie humana sobrevivesse à extinção, o que é improvável, diante de tantos e
tantos e tantos perigos a que a humanidade está o tempo todo exposta.
Nem precisa ir tão longe. Pouca gente, hoje em dia, sabe
dizer, por exemplo, quem era o rei de Portugal, na época em que esse sermão foi
proferido, em 1644. Sabe dele, apenas, um ou outro historiador mais aplicado e
olhem lá. No entanto, em termos históricos, não passou tanto tempo assim da
ocasião em que vivia, ostentava seu efêmero poder e ditava ordens a torto e a
direito. São “apenas” quatrocentos e tantos anos. Pergunto: quantos se
lembrarão dos poderosos de hoje, digamos, em 2516 (isso, reitero, se a espécie
humana não for extinta, o que é improvável que não seja)? Quem se lembrará do
1% dos detentores atuais da quase totalidade das riquezas do mundo, deixando míseras migalhas
para os demais 99% dos habitantes da Terra?
Seria o caso de enviar, por e-mail (ou por outro meio
qualquer), cópia desse profundo, honesto e realista sermão a esses arrogantes
biliardários, para lembrar-lhes que eles não passam de pó, como os demais dos
homens. Claro que eles não dariam mínima trela a essas judiciosas palavras,
dando de ombros com um riso de zombaria, julgando-se onipotentes, com a inútil
onipotência que o dinheiro atualmente lhes confere. Aceitem (certamente não aceitarão)
ou não esta lembrança, todavia, deveriam dar ouvidos às candentes palavras de
Antonio Vieira: “ (...) Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado; os
mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem
vento, e por isso sem vaidade. Esta é a destinação e não há outra”. E,
porventura, há?!!!!
Boa leitura.
O Editor.
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Bem pensado. E complemento: ainda que voe, o pó vivo tem água, e o morto e enterrado, não mais.
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