terça-feira, 5 de julho de 2016

Pó levantado e pó caído



O que mais impressiona nos “Sermões” do Padre Antonio Vieira – além das ricas mensagens espirituais que transmitia e da forma competente e original que utilizava para tal – era o conhecimento que mostrava ter da natureza humana. O homem, apesar da empáfia, arrogância e prepotência dos “poderosos” e da hipocrisia dos que vivem apenas por viver, sem perspectivas e nem serventia nem para si mesmos (a imensa maioria), não passa de um animal como os demais, embora muitos se considerassem e se considerem deuses. É mortal e efêmero. E, salvo interferência do acaso, passa pelo tempo sem sequer deixar vestígios de que um dia existiu. Veio do nada, à sua revelia, e ao nada retornará, sem poder fazer nada para evitar.

Vieira foi direto na veia ao afirmar, em certo trecho de um de seus mais célebres sermões(o da “Sexta-feira da Quaresma”): “Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído: os vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz. Estão estas praças no verão cobertas de pó; dá um pé-de-vento, levanta-se o pó no ar, e que faz? O que fazem os vivos, e muito vivos. Não aquieta o pó, nem pode estar quedo; anda, corre, voa, entra por esta rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo cega, tudo penetra, em tudo e por tudo se mete, sem aquietar, sem sossegar um momento, enquanto o vento dura”.

E prossegue em sua sábia e realista comparação: “Acalmou o vento, cai o pó, e onde o vento parou, ali fica, ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar, ou no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós: Quia pulveses; o vento é a nossa vida: Quia ventus est vita mea. Deu o vento, levantou-se o pó; parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado: estes são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado; os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a destinação e não há outra”. E porventura, há?! Doa o quanto doer à nossa vaidade, à nossa empáfia e à nossa presunção: não passamos de pó, vivos ou mortos.

Destaque-se que este sermão específico foi proferido para os poderosos do seu tempo, ocasião em que Vieira era o capelão da Capela Real em Lisboa. Foi dirigido, portanto, ao rei e à sua corte: os nobres, os barões, os condes, os viscondes, portanto, aos detentores do poder. O pregador lembrou-lhes que, no essencial, eles eram absolutamente iguais aos mais miseráveis dos miseráveis, aos despossuídos, aos que não tinham presente e nem futuro. Enfatizou-lhes que eram pó, como outro ser humano qualquer. Com o tempo, a despeito de todo o poder temporal que ostentavam, seriam esquecidos em um milênio ou muito menos, como tantos outros o foram, são e serão. Isso, se a espécie humana sobrevivesse à extinção, o que é improvável, diante de tantos e tantos e tantos perigos a que a humanidade está o tempo todo exposta.

Nem precisa ir tão longe. Pouca gente, hoje em dia, sabe dizer, por exemplo, quem era o rei de Portugal, na época em que esse sermão foi proferido, em 1644. Sabe dele, apenas, um ou outro historiador mais aplicado e olhem lá. No entanto, em termos históricos, não passou tanto tempo assim da ocasião em que vivia, ostentava seu efêmero poder e ditava ordens a torto e a direito. São “apenas” quatrocentos e tantos anos. Pergunto: quantos se lembrarão dos poderosos de hoje, digamos, em 2516 (isso, reitero, se a espécie humana não for extinta, o que é improvável que não seja)? Quem se lembrará do 1% dos detentores atuais da quase totalidade das  riquezas do mundo, deixando míseras migalhas para os demais 99% dos habitantes da Terra?

Seria o caso de enviar, por e-mail (ou por outro meio qualquer), cópia desse profundo, honesto e realista sermão a esses arrogantes biliardários, para lembrar-lhes que eles não passam de pó, como os demais dos homens. Claro que eles não dariam mínima trela a essas judiciosas palavras, dando de ombros com um riso de zombaria, julgando-se onipotentes, com a inútil onipotência que o dinheiro atualmente lhes confere. Aceitem (certamente não aceitarão) ou não esta lembrança, todavia, deveriam dar ouvidos às candentes palavras de Antonio Vieira: “ (...) Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado; os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a destinação e não há outra”. E, porventura, há?!!!!

Boa leitura.


O Editor.

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Um comentário:

  1. Bem pensado. E complemento: ainda que voe, o pó vivo tem água, e o morto e enterrado, não mais.

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