Os xerifes da língua
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Os toques de clarim e
o rufar dos tambores chamaram a Infantaria e a 7ª. Cavalaria. O Exército
colocou de prontidão os seus soldados armados até os dentes: a tropa da
Academia Brasileira de Letras (ABL), o batalhão dos jornalistas, a brigada
ligeira dos escritores, a legião de políticos, o pelotão do Ministério Público
e até algumas divisões blindadas da Universidade. Todos eles irmanados na santa
cruzada lançaram o grito de guerra que ecoou pelos campos, vilas e cidades do
Brasil, ameaçando o inimigo:
- “Oh, vós, que
desejais assassinar o idioma. Liquidar-vos-emos. Avante!”.
O inimigo é o livro
“Por uma vida melhor” da professora Heloísa Ramos, adotado pelo MEC, que é
apenas a ponta do iceberg. Lá, a autora apresenta a diferença entre falar e
escrever e reconhece que na fala existe muito mais variação do que na escrita.
O jeito de falar muda bastante, de acordo com a região, a classe social e a
situação de comunicação. A mesma pessoa fala diferente se está em casa, na
feira, no bar, no tribunal ou na igreja.
- “Existem várias
línguas faladas em português” – já disse o escritor José Saramago, prêmio Nobel
da literatura. Nesse sentido, cada um de nós é “bilíngue” na própria língua.
Uma dessas línguas é a chamada ‘norma culta’, a de maior prestígio em nossa
sociedade, que é usada na sala de aula como 'norma padrão' e está mais próxima
da escrita formal. Outras são as variedades populares, regidas por uma
diversidade de regras, mas que não chegam a prejudicar a intercompreensão.
Acontece que milhões
de brasileirinhos chegam à escola, falando segundo as regras da variedade popular.
Por isso, são ridicularizados e humilhados. Dessa forma, são levados a se
envergonharem das variedades que a norma padrão, dita culta, considera
“erradas”, e não se apropriam, nessas condições adversas, da outra variedade
considerada “certa”. São reprimidos. Sua fala fica excluída dos espaços
públicos, comprometendo o exercício da cidadania.
Esse fato demonstra a
incapacidade do Estado, que não encontrou ainda o caminho para permitir que
todos os alunos transitem pela norma padrão, dita culta. A autora defende,
então, que a alternativa é admitir que a variedade popular EXISTE, tem suas
regras e é legítima. As duas normas não se excluem, mas se complementam. O
respeito ao jeito de falar do aluno cria um ambiente acolhedor e propício à
aprendizagem da norma culta. Só isso.
Mas tal proposta foi
suficiente para que os xerifes da língua, que combatem a diversidade,
disparassem suas armas alegando, alguns deles, que o MEC quer instituir o
“lulês” como idioma oficial. Distorceram – ou no mínimo não compreenderam (será
que leram?) - o que está escrito no livro. Eles acham que quem defende o
respeito à norma popular quer impô-la ao conjunto da sociedade, como eles o
fazem com a norma padrão que chamam de culta. Por isso, chamam a 7ª.
Cavalaria!!!
As cavalgaduras
A cavalaria veio. Na
linha de frente, cavalgando um pangaré manco – tololoc, tololoc - o centurião
José Sarney (PMDB, vixe-vixe!), membro da ABL, ex-presidente da República e
presidente do Senado. No artigo ‘Fale errado, está certo’ na Folha de SP – com
a espada em riste, ele faz aquilo que fez ao longo de sua vida: atribui aos
outros seus próprios defeitos. Escreve que o livro em questão pretende
“oficializar a burrice”, que “o Brasil resolve criminalizar quem fala
corretamente”, quando é justamente o contrário, e que “defender a língua é
defender a pátria”.
Sarney, defensor da
pátria? Quaquaraquaquá! O que é ‘a língua’ e o que é ‘a pátria’ para ele? Em
sua ‘pátria’ não cabem os deserdados, apenas os beneficiados pelo nepotismo. Já
a ‘língua’ que defende não é um sistema variado, dinâmico e rico, mas se reduz
à (mal) dita norma culta, que ele congela. Elimina as demais variedades,
proclamando que apenas uma variedade é o português, embora nas conversas
telefônicas com sua neta para contratar sem concurso o namorado dela e que
foram gravadas e reproduzidas pelos telejornais, a norma usada não foi bem a
que ele defende.
Da mesma forma,
Sarney, o vixe-vixe, protesta com indignação contra a anarquia:
- “Voltemos ao sistema
tribal: cada um fala como quer”.
Imagina! Que país é
esse onde cada um fala como quer e não como os sarneys da vida pretendem impor!
Sarney, que passou a vida confundindo a coisa pública com a privada, sobretudo
no que se refere à grana, quer privatizar também a língua. Acha que ela é sua e
dos seus. Não reconhece que se trata de produção coletiva. Nem sequer suspeita
que existam regras no falar popular. Exige que a norma dita culta seja o padrão
de correção de todas as demais variedades, confirmando o que escreveu Roland
Barthes:
- “A língua não é
fascista quando impede de dizer, mas quando obriga a dizer de uma determinada
forma”.
Cavalgando um burro
alazão – tololoc, tololoc – o presidente da ABL Marcos Villaça também atacou o
livro. Reduziu a riqueza do idioma a uma reles operação aritmética, com uma
visão primária da matemática, dizendo que admitir outras formas de falar “é
como ensinar tabuada errada. Quatro vezes três é sempre doze, seja na periferia
ou no palácio”.
A mesma imagem foi
usada por sua colega, a escritora Ana Maria Machado, que esqueceu o que ensinou
quando foi minha professora de Comunicação Fabular e Icônica na UFRJ. Ela
reforça essa comparação infeliz: “Equivale a aceitar que dois mais dois possam
ser cinco, com a boa intenção de derrubar preconceitos aritméticos”. Trata-se
de uma falácia, porque ninguém está reivindicando que 2+2=5, mas a
possibilidade de ser 1+1+1+1 ou 3+1 e até 2+2=5-1 e assim por diante, já que o
quatro contém o infinito.
Mas quem se superou
mesmo em bobagens foi o jornalista Merval Pereira - um projetinho de Sarney -
que veio cavalgando uma besta de sela desembestada: tololoc, tololoc. Em sua
coluna no Globo concluiu que se o português popular é legitimo, então ele
deveria “ser ensinado nas escolas e faculdades”, como se fosse preciso ensinar
o que já se sabe.
Merval condenou ainda
o que chamou de “pedagogia da ignorância” e criminalizou o livro adotado pelo
MEC: “Se for uma tentativa de querer justificar a maneira como o presidente
Lula fala, aí então teremos um agravante ao ato criminoso de manter os estudantes
na ignorância”.
Os criminosos
Ops! Vocês ouviram o
que eu ouvi? Ato criminoso? Pois é. Parece que os xerifes do idioma querem
criminalizar a desobediência às regras da norma culta, reproduzindo o que
aconteceu na Cabanagem, a revolta popular mais importante da história da
Amazônia (1832-1840). Bilhetes escritos pelos cabanos, anexados aos processos
criminais, foram exibidos nos tribunais durante o julgamento como “prova de
seus instintos criminosos”. Um deles assinado por Antônio Faustino, um cabano
com a patente de major, diz:
“Axome çem monisão que
muntas vezis teno pidido. Çe uver cunfelito aqi não çei o qe soçederá. Estarei
em pouçilitado de zequtar qalqer prugetu. Halguns camaradas já çairão daqi pur
farta de cumer”. Pontu da Barra, 3 de otobro de 1835. Antonho Fostino, manjor
de artilharia.
O outro, que também se
encontra no Arquivo Público do Pará, “com uma caligrafia feita de garranchos”,
é de um chefe cabano que adverte o presidente da Província:
“...E se V. Exa.
Responsave pellos mal desta província não sortar logo logo móhirmão e outros
patrisio que saxão prezo prometo intrar na sidade comeu inzercito de sinco mil
Ome i não dexar Pedra sobre Pedra”.
Um terceiro documento,
escrito pelo tenente-comandante de Soure, é um ofício dirigido ao cabano
Eduardo Angelim, que ocupou o cargo de presidente da Província:
“Rogo a V. Exa. Nois
quera há-remidiar com algun çal e mesmo harmamentu que estamos mointos faltos
deles. O mais V. Exa. verá no Pidido jontu q. faz obegeto tãoben desti ufisio.
Deos guarde V. Exa. pur moitos anus. Soure, 13 de Dezembru de 1835”.
Que Deus guarde a ABL,
Sarney e Merval pelo período de tempo acima indicado, bem como proteja
políticos como o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), para quem o livro adotado pelo
MEC “está transformando a ortografia em pornografia gramatical” e até o senador
Cristovão Buarque (PDT), ex-reitor da UnB e ex-ministro da Educação, que
declarou sobre o livro em questão:
- “Claro que o livro
deseduca e, pior, mantém o apartheid linguístico. Manter o português errado é
um crime, é manter a desigualdade”.
Crime? Desigualdade?
Segundo Boaventura de Souza Santos, devemos “lutar pela igualdade sempre que as
diferenças nos discriminem e lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos
descaracterize”. Não se trata, evidentemente, de adotar as normas dos cabanos,
mas de recusar sua criminalização.
A professora Heloisa,
que fez um trabalho cuidadoso, está sendo tratada como “criminosa” segundo
algumas divisões blindadas da própria Universidade que também entraram em ação.
Cláudio Moreno, doutor em Letras, ameaçou no jornal Zero Hora de Porto Alegre:
- “O livro tem que ser
proibido e as pessoas devem ser punidas”.
Não disse que tipo de
punição considera mais adequada. Acionado, o pelotão do Ministério Público
partiu para o ataque. A procuradora da República Janice Ascari, do Ministério
Público Federal, cavalgando um jegue – tololoc, tololoc - considerou o livro
citado como “um crime contra nossos jovens”, ganhando manchete de página no
Globo. “Essa conduta não cidadã é inadmissível, inconcebível e, certamente,
sofrerá ações do Ministério Público”, avisou a procuradora.
O historiador peruano
Pablo Macera comenta que se o Império Romano conseguisse proibir o latim
vulgar, como querem agora os xerifes da língua, nós não estaríamos hoje falando
espanhol, português, francês, italiano, romeno, catalão – todas elas variantes
“erradas” do latim clássico, conhecidas como línguas vulgares na Idade Média.
A troca de ‘l’ em ‘r’,
que costuma ser considerada como “atraso mental”, quando alguém fala “pobrema”,
“craro” ou “pranta” é um fenômeno fonético presente na formação da língua
portuguesa, como esclarece Marcos Bagno. Palavras latinas como “blandu, clavu,
flacu, sclavu, obligare” mantiveram o “l” no espanhol, no francês e no
italiano, mas ficaram consagrados na norma culta da língua portuguesa com o
“r”: “brando, cravo, fraco, escravo, obrigar”, etc.
Os xerifes querem
continuar hegemônicos na formulação da política de línguas, autoritária e
intolerante. Para isso, manipulam a opinião pública, ignorando a Declaração
Universal dos Direitos Linguísticos, aprovada em 1996 em Barcelona, num evento
realizado com o apoio da Unesco, recomendando que “os direitos linguísticos
sejam considerados direitos fundamentais do homem” e que as diferenças
linguísticas sejam respeitadas.
P.S. – Agradeço os
colegas do COMIN e da EST, de São Leopoldo (RS), e os colegas da lista Uerj
XXI, com quem pude trocar ideias sobre essa questão. Eles não têm, no entanto,
qualquer responsabilidade pelo conteúdo ou pela forma desse texto.
*
Jornalista, professor e historiador.
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