Homo Urbanus
* Por
Pedro J. Bondaczuk
A vida, nas grandes metrópoles,
apresenta-se de forma muito diversa para as pessoas, dependendo de uma série de
fatores e da realidade pessoal de cada uma. É, por exemplo, “suportável” para
quem tenha nascido nelas, “insuportável” para os amantes da natureza e
“indispensável” para uma certa casta. uma “subespécie” do Homo Sapiens, não
classificada por nenhum antropólogo, mas que poderia ser chamada de “Homo
Urbanus” ou algo que o valha.
No primeiro e no terceiro casos estão,
óbvio, os que não conhecem outra forma de habitar, trabalhar e conviver, por
terem sido condicionados, desde tenra idade, a morar encaixotados em minúsculos
apartamentos com escassa ou nula privacidade, a se espremer em inseguros e
sacolejantes ônibus para ir ao trabalho, a enfrentar desgastantes
engarrafamentos de trânsito quando possuem os próprios carros, enfim, a passar
por todas as torturas, inconvenientes e perigos que constituem o cotidiano do
homem urbano.
Há, entre estes, todavia, quem, nem
mesmo remotamente, conceba outro tipo de vida. Não cogitam, de forma alguma, em
abrir mão das inúmeras facilidades e confortos que não encontrariam no campo,
numa fazenda, num sítio ou numa chácara, por melhor aparelhados que eles sejam.
Estes se sentiriam perdidos e não conseguiriam sobreviver, sequer, digamos, uma
semana, sem o magnífico aparato urbano ao seu dispor, com opções para
praticamente todos os gostos e necessidades. Dos que tiverem, claro, recursos
para pagá-los. Nem todos têm. Aliás, os que podem são minoria.
Cito, como exemplo desse caso, um amigo
pelo qual tenho grande apreço, que raramente deixou a cidade onde ambos moramos
para nada e que, num determinado dia, aceitou, para minha surpresa, convite que
lhe fiz para passarmos um fim de semana no sítio de um parente meu. A viagem
para o local foi tranqüila, apesar dos solavancos do carro nos inúmeros buracos
do arremedo de estrada que tivemos que tomar. Isso não era novidade nem para
ele e nem para mim.
Ao chegarmos ao tal sítio, dos mais
confortáveis e modernos, com eletricidade e água encanada, raridades em muitas
propriedades rurais do tipo, notei que meu acompanhante se sentia perdido,
angustiado e, sobretudo, entediado com a calma, a tranqüilidade e o silêncio do
local em que estávamos. Não que não houvesse ali o que fazer. Havia, e muito. O
sítio tinha (ou na verdade tem, pois ainda está lá no mesmo lugar), entre
tantas benfeitorias e facilidades, um
extenso pomar, com vários tipos de árvores frutíferas, uma horta muito
bem cultivada, um estábulo e até um jardim bastante florido em frente à
casa.
Em vez de acompanhar-me num passeio
pela mata dos arredores, que tinha um riacho tranqüilo e cristalino, que em
certo ponto despencava numa cascata, meu amigo optou por não sair. Pensei que
se tratasse de cansaço da viagem e deixei-o em paz, pensando em convidá-lo mais
tarde para a exploração da propriedade. Fiz isso algumas horas depois, tempo
mais do que suficiente para que descansasse. De novo, recusou. Preferiu ficar
na casa, vendo televisão. Assistiu a todos os programas, até os mais chatos (e
põe chatos nisso!), que tanto detestava. A todo o momento, sugeria que
voltássemos para a cidade, alegando um sem número de motivos, todos sem nenhum
sentido.
À noite, não conseguiu conciliar o sono
e seus passos monótonos e repetitivos pelos cômodos afora impediram-me, também,
de dormir. Pela manhã, ambos com olheiras pela noite mal dormida, indaguei-lhe
o que estava acontecendo. “Não consigo dormir sem o barulho dos carros em
frente à minha janela”, foi sua surpreendente resposta. Ou seja, aquilo que
para mim sempre foi um tormento, no caso a enlouquecedora barulheira urbana,
aos seus ouvidos soava como suave melodia, como doce canção de ninar.
O amigo “viciado em cidade” tanto
insistiu, que naquela mesma manhã voltamos para a loucura e agitação da metrópole, da qual eu não via
a hora de fugir e ele não a via de “voltar”. E nunca mais ele aceitou convite
meu, e nem de qualquer outra pessoa, para um “passeio no campo”. Há muita gente
assim. Essas pessoas nasceram e provavelmente morrerão na grande cidade em que
habitam ou, no máximo, em alguma outra com características parecidas.
Conheço crianças que jamais viram, ao
vivo – a não ser na televisão e em gravuras de livros – animais domésticos como
vacas, cabras, cavalos e ovelhas. Algumas não viram de perto, vivas, nem mesmo
galinhas! As que viram, todas, já vieram assadas e devidamente temperadas para
consumo. Estas, quando crescerem, provavelmente agirão como o meu amigo. Terão
fobia pelo campo, ou quase isso.
Há, todavia, os que consideram a vida
nas grandes metrópoles intolerável, ou quase. Sou um desses casos. Essas
pessoas não vêem a hora de escapar
dessas “arapucas”, para um contato mais estreito com a natureza. Sonham
com o dia em que possam juntar dinheiro suficiente para comprar, se não uma
fazenda, pelo menos algum modesto sítio ou, até mesmo, uma pequena chácara.
Alguns conseguem. A maioria... não.
Eça de Queiroz, no romance “A cidade e
as serras”, faz a seguinte observação, através de um de seus personagens: “Só
uma estreita e reluzente casta goza na cidade os gozos especiais que ela cria.
O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos especiais que
só nela existem”. Exagero do escritor? Longe disso!
Quem não contar com o condicionamento
de encarar as dificuldades e agruras que estas imensas selvas de cimento e
asfalto, barulhentas, agitadas e poluídas, apresentam ficará à margem das
pequenas coisas ao seu redor, que existem mesmo nas mais caóticas megalópoles e
que na aparência são insignificantes, mas que, na verdade, são as que importam
para que alguém seja feliz. A felicidade, afinal de contas, não é nunca
contínua. É constituída de momentos especiais, de instantes mágicos,
imortalizados na lembrança. Se possuísse continuidade, em pouco tempo viraria
rotina. Provocaria o tédio. E não seria, portanto, felicidade. Podemos ser
felizes em qualquer lugar. Em cidades ou fora delas. Mas...
Em outro trecho do seu romance, Eça de
Queiroz escreve: “Alegria como a haverá na cidade para esses milhões de seres
que tumultuam na arquejante ocupação de desejar – e que, nunca fartando o
desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os
sentimentos mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam! (...) São
como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e
limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga
a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que
o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata
apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da
rivalidade ou do orgulho”.
Sei que muitos de vocês, a esta altura,
estão discordando da minha posição e até achando que exagero em minhas
colocações. Alguns são sinceros em sua discordância e é possível que sejam como
meu amigo, incapazes de apreciar e gozar dos encantos da natureza ou de
prescindir, mesmo que por apenas um ou dois dias, das facilidades e do conforto
urbanos. Respeito sua posição e até sua opção. Muitos, porém, mesmo
discordando, fazem-no só “da boca para
fora”. No fundo, no fundo, certamente, estarão sonhando com aquela fazendinha,
ou com aquele sítio, ou mesmo com aquela chácara que tanto querem, mas cujo
desejo não revelam a ninguém.
Nas selvas de cimento e asfalto, que
são as grandes cidades, o indivíduo que não seja natural delas perde suas
raízes culturais, seu referencial, seus valores enquanto ser pensante. Sequer
consegue se concentrar em seus objetivos pessoais mais profundos, para correr
atrás da fortuna (na maioria das vezes nem disso, mas somente da mera
sobrevivência material), da posição social, do poder e de algo muito vago que
se convencionou chamar de “sucesso”, cujas definições do que seja variam de
pessoa para pessoa.
Nada disso, todavia, tem valor, se
passado pelo crivo de qualquer análise, por mais superficial que seja. A
felicidade está nas pequenas coisas, aparentemente triviais e sem importância,
mas que são as que, de fato, importam. Como Mário Quintana afirmou num dos seus
mais deliciosos poemas, ela é como os óculos, que procuramos por toda a parte,
mas que no final das contas estão em nosso rosto, pouco acima do nariz.
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas
(atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e
do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma
nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991
a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição
comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Gosto da fazenda até antes do sol se pôr. Depois, uma cidade me cai bem.
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