domingo, 3 de julho de 2016

Uísque

  

* Por Luís Peazê




- Jack. Jaaack! Ô Jaaaack, vamos lá! – Pensando melhor, esta frase soa bem somente no idioma original, assim: - Come on, Jack, let´s go! – espichando o “a” de Jack. Uma expressão, um nome, uma entonação que carrega um algo mais para algumas pessoas em particular.

Honestamente não sei quais serão as lembranças engraçadas da infância de quem tem por volta de 20 anos de idade. Ou de quem é criança hoje. Mas certamente, só quem testemunhou a televisão chegar neste mundo tem motivo de sobra para olhar no retrovisor da própria vida e rir de si mesmo com prazer. Tirando os brinquedos, no meu caso todos feitos à mão, em casa, menos a bola de couro número 5, são da televisão as minhas recordações mais cômicas. Entrava de tal modo na fantasia dos filmes americanos que durante muito tempo acalentei viver algumas situações dos seus personagens.

Muitas fantasias foram alimentadas até a vida adulta. Uma delas foi viajar através do Texas, Colorado, Arizona e Califórnia, passando por desfiladeiros, dormindo ao relento, no deserto, e comer um prato de feijão com uma caneca de café preparados num fogo de chão. Isso eu consegui realizar. Não é de rir? Só não consegui fazê-lo a cavalo, foi num coelho, é, dirigindo um pequeno Rabbit (Volkswagen 1980 parecido com o Fiat 147 que rodou longo tempo pelo Brasil), comprado num ferro velho por US$ 50,00. Andava com um saco de sonhos (engraçados) nas costas e um deles era realizar a viagem de Jack Kerouac, o precursor dos porraloucas dos anos 60. Jack foi o criador da expressão “beatnick”. Escreveu On the Road (1957), ora sendo filmado por Walter Salles, produção de Francis Ford Coppola, cuja história se desenrola durante suas viagens pelos Estados Unidos. Kerouac saia da Florida, subia até New York, de lá rumava para Denver, no Colorado, depois seguia para Frisco (San Francisco) e então cruzava o sudoeste e sul de volta até a Florida. Consegui percorrer esse itinerário, uma versão far west italiano do Caminho de Santiago. E não perdi a chance de ticar muitos sonhos hilariantes daquele saco nos ombros. Mas o que me trouxe até aqui foi o livro Sangue & Uísque, a vida e a época de Jack Daniel (Imago Editora, 2006). Ganhei-o nesta sexta-feira e tomei um porre. Li-o num gole atrás do outro até o fim.

Quem já tomou um bom porre, alegre (os tristes a gente deve esquecer), sabe que há um estágio da bebedeira, eu diria a três quartos de desabar, que parece que se entrou numa roda gigante que não completa a volta. Sente-se o corpo colado na cadeira, um giro de baixo para cima mas que não chega a completar, e... Bem, a leitura desse livro, traduzido pelo experiente Marcos Santarrita, proporcionou-me essas sensações. Lembranças da infância transportadas para a vida adulta, e dos porres homéricos (lugar comum, eu sei) que tomei, graças a deus.

Confesso que, ainda sóbrio, logo nas primeiras páginas, me incomodei com duas ou três locuções, talvez porque havia tempo não bebia um destilado, há anos só bebo vinho, tinto, moderadamente. Mas o Santarrita me convenceu com sobra, pelos muitos vocábulos e construções formidáveis durante o resto da farra. Conheço o esforço que todo o tradutor tem que fazer para engolir certas bebidas e, este Peter Krass (autor do original) que o Santarrita pegou pela frente é uma dessas. Logo de início ele confessa que não havia muito material disponível sobre o personagem central da biografia, Jack Daniel. Criador da famosa marca americana de uísque. Então, ficou claro, resolveu escrever sobre a história do uísque cuidando para não se afastar muito da vida de Jack. Deixando o velho trôpego sobre o fio do enredo. Ele não se esborracha, contudo.

Uma vez aceitas expressões tais como “Ia ser preciso” (ia melhor “seria preciso”, talvez) e Sul Profundo (aposto que era deep south) no lugar de Extremo Sul, a sensação de cadeira girando, ao longo da leitura, fica explicada pela estrutura que o Krass escolheu, e escolheu bem, para prender a gente na cadeira, lendo. Ele utilizou uma estrutura espiriforme, isto é, retornando um pouco no tempo da narrativa, adiantando e mais à frente fazendo outro retorno, e assim por diante, numa espiral contínua. Tudo acontece entre 1849 e 1950, então você está lendo um episódio de 1889 e, de repente, o autor retrocede para 1830, de lá avança até 1907 e em seguida retorna para 1890. Não é de entontecer? Imagine-se numa serpentina de destilaria. O fato é que a gente vai bebendo, vai gostando, e fica sabendo tudo sobre Jack Daniel e sua época. Quer dizer, sobre a época presa à região em que ele viveu, ou vice-versa. O Tennessee, dos tempos da Guerra da Secessão (o sul, confederados, contra o norte, ianques) e da Lei Seca. 
 
Prova de que tudo o que é proibido tem um gostinho especial, foi justamente durante a Lei Seca, restrições extremas à fabricação, comércio e consumo de bebida alcoólica, que Blood & Uísque acontece. Soluço, desculpe. A propósito, o “sangue” do título dessa biografia não tem nada a ver com hereditariedade. Se refere à época sangrenta das guerras na base da baioneta e dos duelos de revólver, estilo velho oeste, de Bat Masterson a Daniel Boone. Blood & Whiskey (do título original) é uma expressão muito utilizada no folclore americano, aparece em cantigas, em contos e muito, muito mesmo, nos livrinhos de faroeste. Quem os leu na adolescência talvez lembre. Pelo menos lembrará que os caubóis mantinham essa mistura no hálito.

Recomendo o livro, com água ou com gelo, e, se você preferir a leitura pura, poderá ainda extrair alguma lição sutil de marketing, marketing mesmo. Se você não sabe nada de uísque, cuidado, poderá ficar tentado a aderir ao vício, por isso recomendo tomar a via do connaisseur, que investe mais tempo saboreando a história dessa “água da vida” (origem da palavra whiskey) do que propriamente os seus efeitos etílicos. Sabia que uísque nada mais é do que água e álcool etílico, misturados a congêneres que apenas dão o sabor? E mais, esse casamento ethanol água dá certo porque, quimicamente falando, o masculino é water-loving (amante da água).  Agora, se você é daqueles, como um amigo que eu tenho, que se perfuma com malte, dê uma boa talagada. Não é um scotch, mas depois que Jack Daniel desenvolveu a sua pasta azeda de milho branco filtrada em carvão vegetal, tanto o uísque do Tennessee quanto o Bourbon do Kentucky ficaram famosos no mundo, e consolidaram seu espaço em todos os bares, abertos ao público e domésticos. Portanto, beba esse cachorro branco americano de cabeça erguida. 

Para encerrar, a frase do início eu disse uma vez para o meu filho, que nasceu e vive no Tennessee, mas não se chama Jack. Espero que ele sempre lembre de seu pai como uma criança que não queria crescer.

Como saideira, eis uma historinha verídica, da minha viagem pela América, puxando aquele saco de sonhos: depois de dormir no deserto, ouvindo o uivo de coiotes, cruzando o Texas, por uma side road (estrada alternativa à highway), parei numa cidade chamada Lordsburg. Encravada entre dois desfiladeiros, com calçadas de madeira, muitos prédios idem, não, sem cavalos infelizmente, derreou-me em transe. Eu era o próprio Billy the Kid. Amarrei meu Rabitt em frente a um bar com uma bela placa que dizia “Saloon”. Limpei a poeira das calças com uns tapas e entrei, abrindo com o peito as duas abas da porta. Caminhei firme e lentamente na direção do barman, que já me olhava sério. No balcão, finquei os cotovelos, afastei o chapéu para o alto com o indicador e apoiei o pé direito num ferro rente ao chão. Silêncio ao redor. Lentamente girei o pescoço, cuspi na escarradeira ao lado e disse, sem olhar para o barman:

-         Uísque!


* Luís Peazê é escritor, jornalista (MTB 24338) e tradutor de Por Quem os Sinos Dobram, Ernest Hemingway www.luispeaze.com .




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