Uísque
* Por Luís Peazê
- Jack. Jaaack! Ô Jaaaack, vamos lá! –
Pensando melhor, esta frase soa bem somente no idioma original, assim: -
Come on, Jack, let´s go! – espichando o “a” de Jack. Uma expressão, um
nome, uma entonação que carrega um algo mais para algumas pessoas em
particular.
Honestamente não sei quais serão as
lembranças engraçadas da infância de quem tem por volta de 20 anos de idade. Ou
de quem é criança hoje. Mas certamente, só quem testemunhou a televisão chegar
neste mundo tem motivo de sobra para olhar no retrovisor da própria vida e rir
de si mesmo com prazer. Tirando os brinquedos, no meu caso todos feitos à mão,
em casa, menos a bola de couro número 5, são da televisão as minhas recordações
mais cômicas. Entrava de tal modo na fantasia dos filmes americanos que durante
muito tempo acalentei viver algumas situações dos seus personagens.
Muitas fantasias foram alimentadas até
a vida adulta. Uma delas foi viajar através do Texas, Colorado, Arizona e
Califórnia, passando por desfiladeiros, dormindo ao relento, no deserto, e
comer um prato de feijão com uma caneca de café preparados num fogo de chão.
Isso eu consegui realizar. Não é de rir? Só não consegui fazê-lo a cavalo, foi
num coelho, é, dirigindo um pequeno Rabbit (Volkswagen 1980 parecido com o Fiat
147 que rodou longo tempo pelo Brasil), comprado num ferro velho por US$ 50,00.
Andava com um saco de sonhos (engraçados) nas costas e um deles era realizar a
viagem de Jack Kerouac, o precursor dos porraloucas dos anos 60. Jack foi o
criador da expressão “beatnick”. Escreveu On the Road (1957), ora sendo
filmado por Walter Salles, produção de Francis Ford Coppola, cuja história se
desenrola durante suas viagens pelos Estados Unidos. Kerouac saia da Florida,
subia até New York, de lá rumava para Denver, no Colorado, depois seguia para
Frisco (San Francisco) e então cruzava o sudoeste e sul de volta até a Florida.
Consegui percorrer esse itinerário, uma versão far west italiano do
Caminho de Santiago. E não perdi a chance de ticar muitos sonhos hilariantes
daquele saco nos ombros. Mas o que me trouxe até aqui foi o livro Sangue
& Uísque, a vida e a época de Jack Daniel (Imago Editora, 2006).
Ganhei-o nesta sexta-feira e tomei um porre. Li-o num gole atrás do outro até o
fim.
Quem já tomou um bom porre, alegre (os
tristes a gente deve esquecer), sabe que há um estágio da bebedeira, eu diria a
três quartos de desabar, que parece que se entrou numa roda gigante que não
completa a volta. Sente-se o corpo colado na cadeira, um giro de baixo para
cima mas que não chega a completar, e... Bem, a leitura desse livro, traduzido
pelo experiente Marcos Santarrita, proporcionou-me essas sensações. Lembranças
da infância transportadas para a vida adulta, e dos porres homéricos (lugar
comum, eu sei) que tomei, graças a deus.
Confesso que, ainda sóbrio, logo nas
primeiras páginas, me incomodei com duas ou três locuções, talvez porque havia
tempo não bebia um destilado, há anos só bebo vinho, tinto, moderadamente. Mas
o Santarrita me convenceu com sobra, pelos muitos vocábulos e construções
formidáveis durante o resto da farra. Conheço o esforço que todo o tradutor tem
que fazer para engolir certas bebidas e, este Peter Krass (autor do original)
que o Santarrita pegou pela frente é uma dessas. Logo de início ele confessa
que não havia muito material disponível sobre o personagem central da
biografia, Jack Daniel. Criador da famosa marca americana de uísque. Então,
ficou claro, resolveu escrever sobre a história do uísque cuidando para não se
afastar muito da vida de Jack. Deixando o velho trôpego sobre o fio do enredo.
Ele não se esborracha, contudo.
Uma vez aceitas expressões tais como
“Ia ser preciso” (ia melhor “seria preciso”, talvez) e Sul Profundo (aposto que
era deep south) no lugar de Extremo Sul, a sensação de cadeira girando,
ao longo da leitura, fica explicada pela estrutura que o Krass escolheu, e
escolheu bem, para prender a gente na cadeira, lendo. Ele utilizou uma
estrutura espiriforme, isto é, retornando um pouco no tempo da narrativa, adiantando
e mais à frente fazendo outro retorno, e assim por diante, numa espiral
contínua. Tudo acontece entre 1849 e 1950, então você está lendo um episódio de
1889 e, de repente, o autor retrocede para 1830, de lá avança até 1907 e em
seguida retorna para 1890. Não é de entontecer? Imagine-se numa serpentina de
destilaria. O fato é que a gente vai bebendo, vai gostando, e fica sabendo tudo
sobre Jack Daniel e sua época. Quer dizer, sobre a época presa à região em que
ele viveu, ou vice-versa. O Tennessee, dos tempos da Guerra da Secessão (o sul,
confederados, contra o norte, ianques) e da Lei Seca.
Prova de que tudo o que é proibido tem
um gostinho especial, foi justamente durante a Lei Seca, restrições extremas à
fabricação, comércio e consumo de bebida alcoólica, que Blood & Uísque
acontece. Soluço, desculpe. A propósito, o “sangue” do título dessa biografia
não tem nada a ver com hereditariedade. Se refere à época sangrenta das guerras
na base da baioneta e dos duelos de revólver, estilo velho oeste, de Bat
Masterson a Daniel Boone. Blood & Whiskey (do título original) é uma
expressão muito utilizada no folclore americano, aparece em cantigas, em contos
e muito, muito mesmo, nos livrinhos de faroeste. Quem os leu na adolescência
talvez lembre. Pelo menos lembrará que os caubóis mantinham essa mistura no
hálito.
Recomendo o livro, com água ou com
gelo, e, se você preferir a leitura pura, poderá ainda extrair alguma lição
sutil de marketing, marketing mesmo. Se você não sabe nada de uísque, cuidado,
poderá ficar tentado a aderir ao vício, por isso recomendo tomar a via do connaisseur,
que investe mais tempo saboreando a história dessa “água da vida” (origem da
palavra whiskey) do que propriamente os seus efeitos etílicos. Sabia que uísque
nada mais é do que água e álcool etílico, misturados a congêneres que apenas
dão o sabor? E mais, esse casamento ethanol água dá certo porque, quimicamente
falando, o masculino é water-loving (amante da água). Agora, se você é
daqueles, como um amigo que eu tenho, que se perfuma com malte, dê uma boa
talagada. Não é um scotch, mas depois que Jack Daniel desenvolveu a sua pasta
azeda de milho branco filtrada em carvão vegetal, tanto o uísque do Tennessee
quanto o Bourbon do Kentucky ficaram famosos no mundo, e consolidaram seu
espaço em todos os bares, abertos ao público e domésticos. Portanto, beba esse
cachorro branco americano de cabeça erguida.
Para encerrar, a frase do início eu
disse uma vez para o meu filho, que nasceu e vive no Tennessee, mas não se
chama Jack. Espero que ele sempre lembre de seu pai como uma criança que não
queria crescer.
Como saideira, eis uma historinha
verídica, da minha viagem pela América, puxando aquele saco de sonhos: depois
de dormir no deserto, ouvindo o uivo de coiotes, cruzando o Texas, por uma side
road (estrada alternativa à highway), parei numa cidade chamada Lordsburg.
Encravada entre dois desfiladeiros, com calçadas de madeira, muitos prédios
idem, não, sem cavalos infelizmente, derreou-me em transe. Eu era o próprio
Billy the Kid. Amarrei meu Rabitt em frente a um bar com uma bela placa que
dizia “Saloon”. Limpei a poeira das calças com uns tapas e entrei, abrindo com
o peito as duas abas da porta. Caminhei firme e lentamente na direção do barman,
que já me olhava sério. No balcão, finquei os cotovelos, afastei o chapéu para
o alto com o indicador e apoiei o pé direito num ferro rente ao chão. Silêncio
ao redor. Lentamente girei o pescoço, cuspi na escarradeira ao lado e disse,
sem olhar para o barman:
-
Uísque!
* Luís Peazê é escritor,
jornalista (MTB 24338) e tradutor de Por Quem os Sinos Dobram, Ernest Hemingway
www.luispeaze.com .
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