domingo, 7 de agosto de 2011



Escrever com alegria


O escritor deve escrever, sempre, com alegria. Isso não quer dizer que tudo o quanto escreva deva ser róseo, “feliz” (não daquela felicidade genuína e concreta, mas da adocicada e enjoativa, que costumamos chamar de “água com açúcar”). Esta, artificial e falsa, não existe. É logo desmascarada face à realidade. Aliás, essa opinião, que obviamente compartilho, nem mesmo é minha. Tomei-a emprestada de Jorge Luís Borges, cuja literatura influenciou o meu modo de encarar essa atividade que tanto amo e que, por amar tanto, não raro lhe devoto ódio mortal (à atividade e não ao meu “guru”).

Não estranhem. O mundo dos sentimentos é, mesmo, assim: paradoxal e contraditório. Não é novidade para ninguém que o ódio mais profundo e absoluto se origina de um amor com a mesma intensidade que não vingou e acabou frustrado. Claro que odeio a literatura em alguns momentos pontuais e não o tempo todo. Por exemplo, quando mato no nascedouro alguma idéia que tinha tudo paras prosperar e gerar texto brilhante, mas que, por imperícia minha, se transforma numa monstruosidade, num disforme e pavoroso Frankenstein literário. Ou quando não consigo penetrar a às vezes duríssima carapaça do leitor e atingir sua alma, e assim obter sua cumplicidade e, mais do que isso, sua empatia.

Felizmente, para mim, esses instantes de “ódio” – ora ditados por ofuscamento mental meu, ora pelo que interpreto como má vontade, ou incompreensão, ou menosprezo do leitor – são raros, fugazes e passageiros. O rotineiro é eu escrever com alegria e quase sempre até com entusiasmo e empolgação. Não fosse assim, não escreveria tanto. Não haveria clima para isso. E vocês são testemunhas da quantidade de textos que elaboro. Apenas neste espaço, entre colunas que assino e estas reflexões diárias, já passam de um milhar as peças (literárias?) que há já um tempo razoável compartilhei e compartilho com vocês.

Já me perguntaram, em certa ocasião (provavelmente a título de provocação): “Você não pensa em outra coisa que não seja literatura?”. Pensar, eu penso. Até porque, tenho uma vida a viver. Tenho que prover meu sustento e o da família. Preciso trabalhar, relacionar-me afetiva e socialmente. Mas mesmo quando penso nessas coisas, a literatura está ali, presente, insinuante, num cantinho reservado do meu cérebro, a sugerir-me temas, formas de expressá-los, meios de divulgar melhor meus textos etc.etc.etc. Obsessão? Talvez!

Mas sempre que penso nisso, vem-me à memória o que Borges afirmou a propósito: “O escritor vive como escritor. A tarefa de ser poeta não se realiza num horário fixo: ninguém é poeta das oito ao meio-dia e das duas às seis. O poeta é poeta sempre e se vê continuamente assaltado pela poesia. Imagino que isso aconteça também com o pintor, que se sente assediado pelas cores e formas; ou com o músico, que se sente envolvido pelo estranho mundo dos sons (o mais estranho mundo das artes) e assediado por melodias, por dissonâncias”.

Pois é, sinto-me assim. Sinto-me escritor o tempo todo, em casa, quando resolvo os problemas domésticos da família, no trabalho na redação do jornal, nas reuniões sociais, nos momentos de lazer, quando estou no estádio da Ponte Preta torcendo pelo meu time de coração. Sem exagero, vivo, o tempo todo, como escritor. Se bom ou ruim, não me compete julgar. Até porque, eu não teria a isenção necessária para isso. Ou seria complacente em demasia com minhas falhas e contradições. Ora seria sumamente rigoroso a ponto de destruir toda a minha produção. Deixo, pois, o julgamento a esse juiz implacável (que às vezes considero injusto) dos meus textos: o leitor.

Antes de escritor, considero-me poeta, embora a maior parte da minha produção sequer seja de poesia. Trata-se de uma postura de vida, uma obsessão pela beleza e pela transcendência. E procuro compor poesia de tal sorte que cada composição ganhe vida e cresça notadamente quando lida em voz alta. Essa leitura é a minha forma de aferição da qualidade do que foi escrito. E é mais uma sugestão de Jorge Luís Borges que sigo à risca.

O escritor argentino escreveu a esse propósito: “Um verso bom não pode ser lido em voz baixa – ou em silêncio. Se isso for possível, então o verso não vale a pena, pois um verso sempre exige sua pronúncia. O verso nos faz lembrar que, antes de arte escrita, foi uma arte oral; o verso nos lembra que inicialmente foi um canto”. Claro que concordo com meu “guru”. Tenho convicção (embora esta possa soar um tanto arrogante), que se Borges convivesse comigo, iria gostar, se não da minha pessoa, pelo menos das minhas idéias.

A maior parte da minha produção poética – relativamente escassa, pois ascende a apenas 521 poemas – foi composta fora, bem distante, da tranqüilidade e do conforto do meu gabinete de trabalho. Esses versos espontâneos, como suspiros, nasceram ora em bares, ora em salas de espera de médicos e dentistas, ora em ônibus e em tantos outros lugares. É mais uma coisa a dar razão a Borges. Afinal, ele escreveu: “O fato estético é algo tão evidente, imediato e indefinido quanto o amor, o gosto da fruta, a água. Sentimos a poesia como sentimos a presença de uma mulher, uma montanha ou uma baía. Se ela é sentida de imediato, por que diluí-la em outras palavras, que certamente serão mais frágeis do que nossos sentimentos?”. Mas não foi só.

Constatou, também: “A verdade é que a beleza está à nossa espreita. Se tivéssemos sensibilidade, poderíamos captar sua presença na poesia de todos os idiomas”. E, também: “Acredito que a beleza é uma sensação física, algo que sentimos com todo o corpo. Não chegamos a ela por um processo racional, nem por intermédio de regras. A beleza é uma coisa que sentimos ou deixamos de sentir”.

É por tudo isso que escrevo com alegria, embora, paradoxalmente, esse exercício, não raro, me seja penoso. Reitero que escrevo não por gosto, mas por necessidade. E não a econômica, a financeira, a do meu sustento, mas a afetiva, a de cumprimento de missão indeclinável. E escrevo, sempre e sempre, com alegria. Não fosse assim, nunca escreveria.

Boa leitura.

O Editor.




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Um comentário:

  1. Cada vez que nos pomos a explicar o motivo de escrever nos perdemos, pois é uma fome ao avesso, uma necessidade de por para fora alguma coisa que não pode ficar lá dentro. Como disse Cyro dos Anjos quando estava gestando o seu "Amanuense Belmiro", ao ser perguntado para quê escrever outro livro, já que tinha tantos por aí. Ele disse que era uma urgência como uma grávida já na hora do parto. Quem se atreveria a perguntá-la para que colocar mais um vivente no mundo sendo que já tinha tantos por aí? Outra que cabe como explicação foi quando perguntaram a um alpinista(desculpe não recordar o nome dele) o motivo de ele querer subir no topo do Everest: ""Porque ele está lá!".

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