domingo, 29 de maio de 2011







Voz da humanidade

* Por Pedro J. Bondaczuk

A vida é como as águas de um rio. Nunca é a mesma de segundos atrás. Consiste de ganhos e de perdas contínuos, e não raro ilógicos. É uma sucessão de encontros e de desencontros, quase sempre incontroláveis e sem explicação. O acaso, que muitos chamam de “destino”, reúne pessoas, as separa, proporciona fortunas e ocasiona ruínas a todo o instante, sem aviso e de maneira aleatória. Quase nunca pensamos nisso. E muito menos na possibilidade, e mais do que isso, na certeza (inexorável) da nossa extinção.

Lá um belo dia, não se sabe como e nem porque, sem qualquer planejamento prévio, subitamente nos damos conta dessa infernal gangorra, desse jogo de perde e ganha. Fazemos, então, a nossa “contabilidade” e, quase sempre (salvo raras exceções), as conclusões são muito deprimentes, quando não sumamente dolorosas.

Concluímos, acabrunhados, que perdemos muito, muitíssimo mais do que logramos ganhar. Que desperdiçamos, sobretudo, o nosso tempo, que é o maior capital com que podemos contar, com coisas que são absolutamente sem importância, mas que julgamos “importantíssimas”, como riqueza, fama e poder. E esse erro de avaliação tem um preço alto demais, diria proibitivo.

Dia desses, remexendo velhos papéis que trago comigo há décadas – a maioria sem qualquer utilidade, desses que a gente nem sabe porque guarda, mas que teima em guardar, consistentes, entre outras tantas coisas, de convites para festas diversas (casamentos, formaturas, aniversários, batizados, etc.), de notas fiscais antigas e de recados anotados às pressas em pedaços de papel – localizei um poema, intitulado “Pela Rua”, que escrevi em 30 de novembro de 1963. Há quase 48 anos, portanto. Uma vida! Estava escrito em um maço de cigarros “Lincoln”, marca há muito fora de circulação.

“Bobagem”, pensei de cara. E o impulso inicial foi o mais racional possível. Ou seja, foi o de jogá-lo fora. O de fazer, portanto, o que estava fazendo com outras tantas tralhas e velharias inúteis, já que a intenção era a de desocupar uma gaveta (até então inutilizada por esses papéis amarelados, que nunca usei) da escrivaninha.

Todavia, talvez por curiosidade, ou até por mero acaso (destino?), resolvi ler o conteúdo. De início, nem me lembrava de tê-lo escrito. Mas era a minha letra, sem dúvida. E era, também, o meu estilo inconfundível, verborrágico, copioso e muitas vezes exagerado. E, subitamente, todo um período da minha vida e um outro “eu” que custei a reconhecer, se desenharam diante de mim. O poema, frise-se, não é nenhuma obra-prima, mas não deixa de ter lá seus encantos. Já li coisas bem piores.
Diz:


“Pela rua vai vagando
em vago, vagamundo vagabundear.
Vaga para onde, vago destino,
em vagaroso, vago caminhar?

Máquinas zunem, maquinalmente,
ruidosas, fumarentas, apressadas,
reflexo do sol, luz iridiscente
incide nas latarias estilizadas.

Vago, vagando, pela rua apinhada,
o poeta, vagamundo, vagabundeia
à procura de si, à procura de nada,
ao calor do sol, que o ar incendeia,
na vaga humana, vaga, sem feição,
anônima (sombras entre sombras)
amorfa, em caótica movimentação.

Vaga, poeta vagamundo, vadeando
caudalosas torrentes de solidão,
sem saber onde, como e quando
ouviu aquela estranha, vaga canção
de sons desarmoniosos, ritmos
selvagens, batuques do coração.

Vaga, vagaroso, vagotonicamente
à procura de alguém, à procura do nada,
distraído, vaga, displicentemente
em busca de etérea, de vaga amada.

Reflete idéias, palavras, versos,
rumina coplas de inspiração sua,
filosofias, artes, pensamentos travessos,
vagando, vago, vagaroso pela rua...”.

Ao concluir a leitura, me perguntei, melancólico: em que parte do caminho se perdeu aquele garoto idealista, que escreveu estes versos ingênuos, e que acreditava tanto poder salvar o mundo apenas com a força das suas convicções? Onde os sonhos, onde os projetos altruísticos, onde as tantas utopias? Restaram esquecidos em algum segmento do tempo, em um passado já tão velho, tão distante, tão remoto...E, no entanto, sobrevive dentro de mim, reprimido, sufocado, amarrado a tolas convenções, mas vivo.

Entendi (ou pelo menos julguei entender) a mensagem procedente de uma época já tão remota, embora pareça somente ontem. Compreendi o que havia por trás de cada verso, cada metáfora, cada estrofe. Pois, como escreveu Theodor Adorno, “só entende aquilo que o poema diz quem escuta em sua solidão a voz da humanidade”. E eu a escuto, aflita e desesperada, a cada segundo, minuto, hora e dia e a cada passo da minha vida que, célere, se escoa, sem nada poder fazer para ajudar.

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

3 comentários:

  1. Dá um nozinho na garganta né...
    Já me peguei revirando coisas
    que nem imaginava ter escrito e
    morri de saudades de mim mesma.
    Lindo texto Pedro.
    Abraços

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  2. Verborrágico sem dúvida. Surpreende o tamanho do poema para ser escrito num maço de cigarros. E do tempo gasto na escolha das palavras. Pode não ser uma obra prima, mas já vi versos redundantes fazerem relativo sucesso quando juntados a melodias. Ver o passado nos escritos dá saudade e arrependimento. Pergunta-se: por que fiz isso e não aquilo?

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