Alma preparada
* Por Rubem Costa
Não, senhores, não foi no tempo das jardineiras. Naquele dia, o que eu estava esperando, ali parado, não era mais a geringonça que no meu tempo de menino circulava, carregando gente pelo Interior afora. Aqueles antigos armários motorizados de lados vazados e bancos paralelos se arrastando pelas estradas poeirentas já não mais existiam. Em verdade, domada pelo asfalto, nem mesmo poeira havia... O progresso chegara e com ele o ônibus fechado de janelas de vidro e poltronas macias.
A diferença, entanto, era só no conceito de conforto e forma da carroceria, porque, quanto aos horários, de acordo com a tradição, continuavam sempre fora do programa. Parece que disputavam com a “maria fumaça” da Mogiana para saber quem ganhava nos atrasos. Perto de mim, na agência de embarque da Cometa, o padre resmungava impaciente contra a demora. Olhava o relógio com ar de reprovação. — “Que fazer, disse-me afinal, para disfarçar a irritação, é preciso a gente ter calma e tolerância porque tudo acontece por obra de Deus.” Respirou fundo e continuou — “Ele aponta os caminhos. Veja o que aconteceu, semana passada, nesta mesma agência. Monsenhor João Batista estava aqui esperando a condução para São Paulo.
Quando o ônibus chegou, já com mais de uma hora de atraso, viu no momento do embarque que uma mulher aparentando estar muito doente, se arrastava para o único lugar vago no fundo do carro. Condoído, propôs imediatamente uma troca com ela que passou a ocupar a poltrona para ele reservada. Enquanto a doente se acomodava bem na frente, ele foi sentar-se feliz no fundo do carro. Depois da partida, não havia passado uma hora, chegou a notícia alarmante, o ônibus tombara na estrada, causando ferimentos em passageiros e uma vítima fatal: Monsenhor João, aquele que trocara de lugar com a doente.” — “Eis aí — arrematou padre Ângelo — os desígnios da Providência. Com certeza, Deus fez Monsenhor promover a barganha pelo lugar fatal, porque sabia que só ele — e não a pobre mulher — estava com a alma preparada para ocupar um posto no céu”. Assenti com a cabeça imaginado um seguro de vida para mim. Assim que pároco terminou de falar, chegou o nosso ônibus.
Preventivamente, na hipótese de um novo desastre, fui até ele que já se acomodara em sua poltrona numerada e lhe roguei esperançoso. — “Padre, não estou com a alma preparada, vamos trocar de lugar?” Primeiro, desconfiado, remexendo-se aflito, fez que não me ouviu. Repeti a proposta. “Diante da insistência, recolheu-se rapidinho na explicação estropiada: - “Han! Compreendo, mas infelizmente não posso, também ainda não estou preparado, só quando eu for Monsenhor”. Decepcionado, vi minha apólice securitária escorrer pelo ralo... Na hora do clister, o sacerdote tirava o corpo da seringa. Encolheu-se na blague sorrateira que mandava às favas a essência apostólica do dar de si — viver para salvação das almas.
O reverendo possuía o fervor da fé, mas na transição entre o conhecido e o desconhecido não tinha bem certeza como seria o paraíso. Nada de trocar o certo pelo duvidoso. Pensou lógico. Arriscar para quê? Mateus, primeiro os meus! Afinal, quem nasceu para ser tosquiado e virar churrasco foi a ovelha, não o pastor. Melhor era ficar por aqui, a pastorear com segurança, preparando a alma até chegar a cônego. Ou talvez, quem sabe, melhor fosse um pouco mais além, até à gloriosa idade de bispo jubilado. Precaução e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. Assim pensado, assim feito. A generosa dádiva de si mesmo com expressão de amor é privilegio só dos santos. Assim mesmo, apenas dos verdadeiros, sem codificação política. Daqueles cuja santidade reflui sem necessidade da canonização... “Sans peur et sans reproche”.
Basta olhar para compreender Francisco de Assis se despojando das vestes e Catarina de Senna recolhendo ao colo a cabeça decepada de um condenado inocente. São porque são. Mas quem era ele (sacerdote em começo de carreira) para ser santo? Conformei-me. De lá para cá já decorreram cinqüenta anos e ainda estou esperando pacientemente um padre ou pastor evangélico de alma preparada que se disponha, a longo prazo, fazer a barganha: trocar comigo de lugar na hora que a parca estiver por chegar. Propus a transação (contrato de futuro, a longo prazo) a um diácono que se escandalizou, dizendo que sou um espírito empedernido, sem lastro para o negócio. Mas não me amofinei, não tenho pressa. Pela benfeitoria celestial posso esperar por uns trinta anos, quem sabe até um pouco mais, sem protestar. Nunca reclamei.
Quem se irritava com o atraso era o padre. Respeito a prudência. Se não quer trocar, paciência... Claro que é uma questão de medo, mas quem não o tem? Começamos a senti-lo ainda no ventre materno. Amalgamado na escuridão do útero, o ser sofre o primeiro choque ao ser expulso para a luz. O conforto a que se habituara é bruscamente interrompido provocando-lhe a surpresa que o leva a chorar. É o susto, preâmbulo da emoção que o acompanhará ao longo da existência. Está na raiz das religiões que dele fazem o sustentáculo da obediência aos deuses: “Terás temor de Jeová, teu Deus” (Deuteronômio, Cap. 10, vers. 20), diz a Bíblia. Tímido (o que tem temor) passa a ser daí então, em maior ou menor escala, o estado ou feição psíquica do homem. Entretanto, entre as causa geradoras do terror, a extinção da vida terrena é a que mais assusta, tanto que, compenetrada de sua inafastabilidade, a sabedoria popular sentencia que para tudo há remédio menos para morte. Daí resulta que na contrafação da existência, alarmado por não saber o que vem depois, o homem sente uma infinita fome de perenidade. Não quer partir.
O jovem padre, que se esquivou de permutar o lugar comigo no ônibus, sabia bem disso. Desconfiando que a batina sentada em minha poltrona despreparada poderia ser uma atração para a chamada divina, preferiu não se arriscar. Tivesse havido a barganha, também eu, se fosse supersticioso, ter-me-ia mijado inteiro antes de chegar ao fim da viagem. De medo. Com pavor do Deus de minha infância, torturador que me diziam “vinga a iniqüidade dos pais nos filhos”. Crueldade sádica que paradoxalmente nega ao ser (porque todos somos filhos) a faculdade de salvar-se pelos seus próprios atos. Assim, enquanto minha “jardineira” não chega, vou ficando por aqui, procurando entender a perplexidade do homem que, sonhando com o sem fim, morre de medo de perder a sua eternidade.
* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
Não, senhores, não foi no tempo das jardineiras. Naquele dia, o que eu estava esperando, ali parado, não era mais a geringonça que no meu tempo de menino circulava, carregando gente pelo Interior afora. Aqueles antigos armários motorizados de lados vazados e bancos paralelos se arrastando pelas estradas poeirentas já não mais existiam. Em verdade, domada pelo asfalto, nem mesmo poeira havia... O progresso chegara e com ele o ônibus fechado de janelas de vidro e poltronas macias.
A diferença, entanto, era só no conceito de conforto e forma da carroceria, porque, quanto aos horários, de acordo com a tradição, continuavam sempre fora do programa. Parece que disputavam com a “maria fumaça” da Mogiana para saber quem ganhava nos atrasos. Perto de mim, na agência de embarque da Cometa, o padre resmungava impaciente contra a demora. Olhava o relógio com ar de reprovação. — “Que fazer, disse-me afinal, para disfarçar a irritação, é preciso a gente ter calma e tolerância porque tudo acontece por obra de Deus.” Respirou fundo e continuou — “Ele aponta os caminhos. Veja o que aconteceu, semana passada, nesta mesma agência. Monsenhor João Batista estava aqui esperando a condução para São Paulo.
Quando o ônibus chegou, já com mais de uma hora de atraso, viu no momento do embarque que uma mulher aparentando estar muito doente, se arrastava para o único lugar vago no fundo do carro. Condoído, propôs imediatamente uma troca com ela que passou a ocupar a poltrona para ele reservada. Enquanto a doente se acomodava bem na frente, ele foi sentar-se feliz no fundo do carro. Depois da partida, não havia passado uma hora, chegou a notícia alarmante, o ônibus tombara na estrada, causando ferimentos em passageiros e uma vítima fatal: Monsenhor João, aquele que trocara de lugar com a doente.” — “Eis aí — arrematou padre Ângelo — os desígnios da Providência. Com certeza, Deus fez Monsenhor promover a barganha pelo lugar fatal, porque sabia que só ele — e não a pobre mulher — estava com a alma preparada para ocupar um posto no céu”. Assenti com a cabeça imaginado um seguro de vida para mim. Assim que pároco terminou de falar, chegou o nosso ônibus.
Preventivamente, na hipótese de um novo desastre, fui até ele que já se acomodara em sua poltrona numerada e lhe roguei esperançoso. — “Padre, não estou com a alma preparada, vamos trocar de lugar?” Primeiro, desconfiado, remexendo-se aflito, fez que não me ouviu. Repeti a proposta. “Diante da insistência, recolheu-se rapidinho na explicação estropiada: - “Han! Compreendo, mas infelizmente não posso, também ainda não estou preparado, só quando eu for Monsenhor”. Decepcionado, vi minha apólice securitária escorrer pelo ralo... Na hora do clister, o sacerdote tirava o corpo da seringa. Encolheu-se na blague sorrateira que mandava às favas a essência apostólica do dar de si — viver para salvação das almas.
O reverendo possuía o fervor da fé, mas na transição entre o conhecido e o desconhecido não tinha bem certeza como seria o paraíso. Nada de trocar o certo pelo duvidoso. Pensou lógico. Arriscar para quê? Mateus, primeiro os meus! Afinal, quem nasceu para ser tosquiado e virar churrasco foi a ovelha, não o pastor. Melhor era ficar por aqui, a pastorear com segurança, preparando a alma até chegar a cônego. Ou talvez, quem sabe, melhor fosse um pouco mais além, até à gloriosa idade de bispo jubilado. Precaução e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. Assim pensado, assim feito. A generosa dádiva de si mesmo com expressão de amor é privilegio só dos santos. Assim mesmo, apenas dos verdadeiros, sem codificação política. Daqueles cuja santidade reflui sem necessidade da canonização... “Sans peur et sans reproche”.
Basta olhar para compreender Francisco de Assis se despojando das vestes e Catarina de Senna recolhendo ao colo a cabeça decepada de um condenado inocente. São porque são. Mas quem era ele (sacerdote em começo de carreira) para ser santo? Conformei-me. De lá para cá já decorreram cinqüenta anos e ainda estou esperando pacientemente um padre ou pastor evangélico de alma preparada que se disponha, a longo prazo, fazer a barganha: trocar comigo de lugar na hora que a parca estiver por chegar. Propus a transação (contrato de futuro, a longo prazo) a um diácono que se escandalizou, dizendo que sou um espírito empedernido, sem lastro para o negócio. Mas não me amofinei, não tenho pressa. Pela benfeitoria celestial posso esperar por uns trinta anos, quem sabe até um pouco mais, sem protestar. Nunca reclamei.
Quem se irritava com o atraso era o padre. Respeito a prudência. Se não quer trocar, paciência... Claro que é uma questão de medo, mas quem não o tem? Começamos a senti-lo ainda no ventre materno. Amalgamado na escuridão do útero, o ser sofre o primeiro choque ao ser expulso para a luz. O conforto a que se habituara é bruscamente interrompido provocando-lhe a surpresa que o leva a chorar. É o susto, preâmbulo da emoção que o acompanhará ao longo da existência. Está na raiz das religiões que dele fazem o sustentáculo da obediência aos deuses: “Terás temor de Jeová, teu Deus” (Deuteronômio, Cap. 10, vers. 20), diz a Bíblia. Tímido (o que tem temor) passa a ser daí então, em maior ou menor escala, o estado ou feição psíquica do homem. Entretanto, entre as causa geradoras do terror, a extinção da vida terrena é a que mais assusta, tanto que, compenetrada de sua inafastabilidade, a sabedoria popular sentencia que para tudo há remédio menos para morte. Daí resulta que na contrafação da existência, alarmado por não saber o que vem depois, o homem sente uma infinita fome de perenidade. Não quer partir.
O jovem padre, que se esquivou de permutar o lugar comigo no ônibus, sabia bem disso. Desconfiando que a batina sentada em minha poltrona despreparada poderia ser uma atração para a chamada divina, preferiu não se arriscar. Tivesse havido a barganha, também eu, se fosse supersticioso, ter-me-ia mijado inteiro antes de chegar ao fim da viagem. De medo. Com pavor do Deus de minha infância, torturador que me diziam “vinga a iniqüidade dos pais nos filhos”. Crueldade sádica que paradoxalmente nega ao ser (porque todos somos filhos) a faculdade de salvar-se pelos seus próprios atos. Assim, enquanto minha “jardineira” não chega, vou ficando por aqui, procurando entender a perplexidade do homem que, sonhando com o sem fim, morre de medo de perder a sua eternidade.
* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
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