Reclamação sobre um disparate
* Por Mariella Augusta
Outro dia meu pai, que conhece minha paixão profunda por Borges ou antes que a incitou, mostrou-me uma ímpia matéria de jornal. Por que a chamo assim? Porque em seu texto vinham grafadas letras irreais. Seu autor parece ter sido acometido por um ufanismo delirante ou por uma fobia qualquer dos ácaros de sua prateleira. Numa coluna para o Estadão, o renomado senhor dizia sem freios que Chico Buarque em seus romances tinha superado o insuperável argentino (que também era inglês); e que seu contemporâneo Caetano Veloso teria em seu ensaio “Verdade Tropical” ultrapassado Sérgio Buarque e Gilberto Freyre. Dizia em tom de assertiva. Como se falasse de episteme e não de doxa. O que seria já absurdo. Mas não apenável. Que pena posso lhe aplicar senão minhas duras palavras? É nesse sentido que segue minha indignada pena.
Caro leitor, evidente, há inúmeros méritos em ambos artistas. Alguns versos de Terra e a canção Coração Vagabundo, bem como a parceira imprescindível do herdeiro dos Holanda com o mágico Tom Jobim, deram muito à minha formação e ao meu espírito. Mas creio, não sem muita fé, que ambos, por mais que a vaidade moleste a todos nós, jamais consentiriam com tal heresia. O colunista peca em excesso sob dois aspectos fundamentais ao intelectual sério: primeiro, subvertendo nossa idéia de recuperar a auto-estima brasileira (nas artes), que parece uma tendência inaugurada pela indústria do cinema graças às nossas indicações ao prêmio máximo dessa arte. Não há como negar nossos maiores nomes das artes, sobretudo em literatura. Devemos mesmo mostrar ao povo o que é que a baiana tem. Mas não podemos chegar ao ridículo. Comparar a obra literária do paulista ao argentino é escorregar nessa falsa auto-estima. Quando ela tem força suficiente para nos manter de pé, e não nos derrubar com fáceis refutações.
Todos querem ser escritores. Há um peso elegante nisso. Mas é preciso nascer um escritor. Borges nasceu, Buarque se aventurou. O pai de Borges sonhou um filho escritor e as moiras lhe deram Jorge Luis. Essa coincidência maravilhosa ele a descreve sublinharmente no seu “Ruínas Circulares”, um pequeno conto de 5 páginas que pode nos levar a 50 anos de meditação. Quem já leu “O Sul”, “A outra Morte” e tantas outras histórias curtas, mas infinitas desse homem, entende o disparate impunemente vendido no jornal a 5 reais.
O segundo aspecto é deixar de reverenciar os antepassados em detrimento do aristós pelo novo, ou contemporâneo. Dizer que o compositor baiano é melhor que Freyre e Holanda é brincar com a nossa intelecção. O pernambucano que fez o Brasil conhecer-se e o pai do compositor de Construção que deitou olhos fundos em nossa realidade sócio-economica devem ter lugares indiscutíveis em nosso panteão. Saber que as escravas tinham seus lábios arrancados pelo ciúme da grande dama, é essencial para entender a dor da escravidão. Sua face funesta e incompreensível. Recuso-me a não chamar esse senhor a dar explicações. Calar é consentir. Não consinto. Por que o barulho? Porque o jornal é uma literatura de informação. Aos leitores que desconhecem a vasta, em todos os aspectos, obra desses gênios tripudiados pode ser uma fatalidade, já que não é comum levantarem-se vozes contra os livros dos nossos grandes compositores musicais. Assim , o fulano de Tal que sentado na sua manhã e abre esse artigo, podendo dar crédito a essas bizarras palavras estará condenado pela opinião de alguém que ocupando considerável espaço falou estultícia e assim ficará desfalcado nosso panteão. Esse Senhor, que atende pelo nome de Juarez, poderia falar de seu gosto com tanta convicção. Mas nunca afirmar essa estultice.
* Bacharel em Direito, mestranda da FFLCH (USP), escritora, autora de “O Fio de Cloto”, livro de contos prefaciado por Bruno Fregni Basseto, grande filólogo e vencedor do Prêmio Jabuti. Publicou crônicas no “Jornal das Artes” e artigos em várias revistas acadêmicas.
* Por Mariella Augusta
Outro dia meu pai, que conhece minha paixão profunda por Borges ou antes que a incitou, mostrou-me uma ímpia matéria de jornal. Por que a chamo assim? Porque em seu texto vinham grafadas letras irreais. Seu autor parece ter sido acometido por um ufanismo delirante ou por uma fobia qualquer dos ácaros de sua prateleira. Numa coluna para o Estadão, o renomado senhor dizia sem freios que Chico Buarque em seus romances tinha superado o insuperável argentino (que também era inglês); e que seu contemporâneo Caetano Veloso teria em seu ensaio “Verdade Tropical” ultrapassado Sérgio Buarque e Gilberto Freyre. Dizia em tom de assertiva. Como se falasse de episteme e não de doxa. O que seria já absurdo. Mas não apenável. Que pena posso lhe aplicar senão minhas duras palavras? É nesse sentido que segue minha indignada pena.
Caro leitor, evidente, há inúmeros méritos em ambos artistas. Alguns versos de Terra e a canção Coração Vagabundo, bem como a parceira imprescindível do herdeiro dos Holanda com o mágico Tom Jobim, deram muito à minha formação e ao meu espírito. Mas creio, não sem muita fé, que ambos, por mais que a vaidade moleste a todos nós, jamais consentiriam com tal heresia. O colunista peca em excesso sob dois aspectos fundamentais ao intelectual sério: primeiro, subvertendo nossa idéia de recuperar a auto-estima brasileira (nas artes), que parece uma tendência inaugurada pela indústria do cinema graças às nossas indicações ao prêmio máximo dessa arte. Não há como negar nossos maiores nomes das artes, sobretudo em literatura. Devemos mesmo mostrar ao povo o que é que a baiana tem. Mas não podemos chegar ao ridículo. Comparar a obra literária do paulista ao argentino é escorregar nessa falsa auto-estima. Quando ela tem força suficiente para nos manter de pé, e não nos derrubar com fáceis refutações.
Todos querem ser escritores. Há um peso elegante nisso. Mas é preciso nascer um escritor. Borges nasceu, Buarque se aventurou. O pai de Borges sonhou um filho escritor e as moiras lhe deram Jorge Luis. Essa coincidência maravilhosa ele a descreve sublinharmente no seu “Ruínas Circulares”, um pequeno conto de 5 páginas que pode nos levar a 50 anos de meditação. Quem já leu “O Sul”, “A outra Morte” e tantas outras histórias curtas, mas infinitas desse homem, entende o disparate impunemente vendido no jornal a 5 reais.
O segundo aspecto é deixar de reverenciar os antepassados em detrimento do aristós pelo novo, ou contemporâneo. Dizer que o compositor baiano é melhor que Freyre e Holanda é brincar com a nossa intelecção. O pernambucano que fez o Brasil conhecer-se e o pai do compositor de Construção que deitou olhos fundos em nossa realidade sócio-economica devem ter lugares indiscutíveis em nosso panteão. Saber que as escravas tinham seus lábios arrancados pelo ciúme da grande dama, é essencial para entender a dor da escravidão. Sua face funesta e incompreensível. Recuso-me a não chamar esse senhor a dar explicações. Calar é consentir. Não consinto. Por que o barulho? Porque o jornal é uma literatura de informação. Aos leitores que desconhecem a vasta, em todos os aspectos, obra desses gênios tripudiados pode ser uma fatalidade, já que não é comum levantarem-se vozes contra os livros dos nossos grandes compositores musicais. Assim , o fulano de Tal que sentado na sua manhã e abre esse artigo, podendo dar crédito a essas bizarras palavras estará condenado pela opinião de alguém que ocupando considerável espaço falou estultícia e assim ficará desfalcado nosso panteão. Esse Senhor, que atende pelo nome de Juarez, poderia falar de seu gosto com tanta convicção. Mas nunca afirmar essa estultice.
* Bacharel em Direito, mestranda da FFLCH (USP), escritora, autora de “O Fio de Cloto”, livro de contos prefaciado por Bruno Fregni Basseto, grande filólogo e vencedor do Prêmio Jabuti. Publicou crônicas no “Jornal das Artes” e artigos em várias revistas acadêmicas.
Gosto é gosto e importância é importância. É preciso sensatez para os separar.
ResponderExcluir