Sem perder a ternura
* Por Pablo Uchoa
Recebo de uma amiga chilena um exemplar de colecionador de um clássico latino-americano. Canto Geral, de Pablo Neruda, chega à minha casa já um tanto amarelado, folheio suas páginas frágeis e me embriago com o cheiro de livro velho. Não resisto à tentação de sentar e experimentar, de imediato, os versos do grande poeta.
Neruda colocou o ponto final em Canto Geral nos primeiros dias de fevereiro de 1949, quando se encontrava “na perseguição, sob as asas clandestinas da minha pátria”, para usar suas palavras. Publicou-o em novembro de 1950.
O poeta nunca esteve entre meus favoritos – eu, pernóstico, batizado em sua homenagem, considerava óbvia tal predileção. Neruda uma vez se definiu como o poeta do amor, e eu prefiro sua tormenta verbal na militância, em prol da utopia, das lutas de seu tempo.
Em Canto Geral, sua veia política está à mostra. O discurso Eu acuso, que proferiu como senador em janeiro de 1948 para denunciar a perseguição política de seus companheiros de Partido Comunista, enfureceu o então presidente Gonzalez Videla. Poucos meses depois, o antigo aliado lançou o partidão às sombras.
Canto Geral tem, assim, valor duplo. O primeiro é literário e incontestável. O épico em versos, de exatas 446 páginas, canta a América desde quando o homem ainda era coisa inédita por aqui. “Antes da peruca e da casaca foram os rios, os rios arteriais; foram as cordilheiras, em cujo topo rajado o condor ou a neve pareciam imóveis”, é como Neruda inicia sua descida à América Latina profunda.
Rios, aves, camponeses, libertadores, oceanos se transformam em personagens que Neruda descreve magistralmente. Ou antes louva, à sua maneira inflamada e bela, como a história das guerras de libertação. Endurecida sem perder a ternura.
Quem sabe os daquela época estivessem mesmo empreendendo uma guerra de libertação. Pois em algum momento os ares do tempo haviam de encher os pulmões também dos comandantes da revolução que tomaria Cuba nove anos mais tarde. E inspirar um médico recém-formado, que se especializara em dermatologia interessado em combater a lepra: Ernesto Guevara.
Os céticos podem argumentar que de Neruda a Chávez, de Bolívar a Lula, todos os cânticos latino-americanos não passam de variações sobre o mesmo tema. Canto Geral, no entanto, não dá espaço ao descompromisso, à superficialidade. É uma obra-prima que retrata uma geração apaixonada por suas utopias.
Como o próprio Neruda, que se autodefinia como “um poeta local do Chile, provinciano da América Latina”. Ele morreu de desgosto em 1973, quando viu ambos solaparem sob as botas dos regimes militares do período. Seu Chile apenas iniciava a jornada pelo tenebroso regime do general Augusto Pinochet.
Pablo Neruda se dizia – e foi – o poeta do amor. Mas estes são seus versos mais arrebatados.
*Jornalista, graduado pela USP em 2000. Trabalhou, por cinco anos, na TV Globo, como produtor e editor da Globonews e do núcleo de reportagens especiais do Jornal Nacional. Autor do livro-reportagem “Venezuela: a encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003). Mora na Inglaterra e é pesquisador do Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres.
* Por Pablo Uchoa
Recebo de uma amiga chilena um exemplar de colecionador de um clássico latino-americano. Canto Geral, de Pablo Neruda, chega à minha casa já um tanto amarelado, folheio suas páginas frágeis e me embriago com o cheiro de livro velho. Não resisto à tentação de sentar e experimentar, de imediato, os versos do grande poeta.
Neruda colocou o ponto final em Canto Geral nos primeiros dias de fevereiro de 1949, quando se encontrava “na perseguição, sob as asas clandestinas da minha pátria”, para usar suas palavras. Publicou-o em novembro de 1950.
O poeta nunca esteve entre meus favoritos – eu, pernóstico, batizado em sua homenagem, considerava óbvia tal predileção. Neruda uma vez se definiu como o poeta do amor, e eu prefiro sua tormenta verbal na militância, em prol da utopia, das lutas de seu tempo.
Em Canto Geral, sua veia política está à mostra. O discurso Eu acuso, que proferiu como senador em janeiro de 1948 para denunciar a perseguição política de seus companheiros de Partido Comunista, enfureceu o então presidente Gonzalez Videla. Poucos meses depois, o antigo aliado lançou o partidão às sombras.
Canto Geral tem, assim, valor duplo. O primeiro é literário e incontestável. O épico em versos, de exatas 446 páginas, canta a América desde quando o homem ainda era coisa inédita por aqui. “Antes da peruca e da casaca foram os rios, os rios arteriais; foram as cordilheiras, em cujo topo rajado o condor ou a neve pareciam imóveis”, é como Neruda inicia sua descida à América Latina profunda.
Rios, aves, camponeses, libertadores, oceanos se transformam em personagens que Neruda descreve magistralmente. Ou antes louva, à sua maneira inflamada e bela, como a história das guerras de libertação. Endurecida sem perder a ternura.
Quem sabe os daquela época estivessem mesmo empreendendo uma guerra de libertação. Pois em algum momento os ares do tempo haviam de encher os pulmões também dos comandantes da revolução que tomaria Cuba nove anos mais tarde. E inspirar um médico recém-formado, que se especializara em dermatologia interessado em combater a lepra: Ernesto Guevara.
Os céticos podem argumentar que de Neruda a Chávez, de Bolívar a Lula, todos os cânticos latino-americanos não passam de variações sobre o mesmo tema. Canto Geral, no entanto, não dá espaço ao descompromisso, à superficialidade. É uma obra-prima que retrata uma geração apaixonada por suas utopias.
Como o próprio Neruda, que se autodefinia como “um poeta local do Chile, provinciano da América Latina”. Ele morreu de desgosto em 1973, quando viu ambos solaparem sob as botas dos regimes militares do período. Seu Chile apenas iniciava a jornada pelo tenebroso regime do general Augusto Pinochet.
Pablo Neruda se dizia – e foi – o poeta do amor. Mas estes são seus versos mais arrebatados.
*Jornalista, graduado pela USP em 2000. Trabalhou, por cinco anos, na TV Globo, como produtor e editor da Globonews e do núcleo de reportagens especiais do Jornal Nacional. Autor do livro-reportagem “Venezuela: a encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003). Mora na Inglaterra e é pesquisador do Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres.
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