terça-feira, 24 de maio de 2011







A orquestra sinfônica e o cachorro

* Por Harry Wiese

Sempre tive a certeza de que alguns cachorros têm manias de gente. Minha afirmação foi confirmada no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, durante a apresentação da Orquestra Sinfônica de Bamberg, da Baviera, a Bamberger Symphoniker, regida pelo maestro Jonathan Nott.
Ali, ao ar livre, sentados no gramado, milhares de apreciadores da música clássica esperaram o início do show. Quer dizer: milhares de espectadores e algumas dezenas de cachorros. Nestas oportunidades, pessoas e animais exercem a absoluta prática de convivência em harmonia e por isso os humanos levam seus bichos de estimação para os mais inusitados lugares.
Depois dos primeiros acordes da orquestra, os aplausos das pessoas eram contundentes. Os cachorros mantinham-se em comportamento canino, exceto um magnífico exemplar, da raça Border Collie, chamado Ludovico, que latia de forma cadenciada e elegante, acompanhando as manifestações afetivas da multidão.
Todavia, nestes casos, nem sempre há unanimidade e isto também é compreensível. Assim, diante do inédito comportamento canino, logo alguém pôs-se a proferir resmungos:
─ Tem gente que não se enxerga! ─ referindo-se ao fato de levar animais ao parque.
Outros ainda deixaram suas reclamações e xingamentos no mundo das ideias, em homenagem a um certo filósofo, não no sentido da arte que para ele era corrompedora da juventude, mas para conter os ímpedos do desequilíbrio emocional. Não era hora para se estressar diante de tanta sensibilidade musical. Pensamentos são pensamentos e não é possível controlá-los. E seria possível ter maior poética do que ali no gramado do Ibirapuera? Orquestra internacional, multidão seleta, cachorros, céu azul e aviões levantando voo logo ali em Congonhas para competir com os violoncelos e contrabaixos da orquestra.
Durante o espatáculo, Ludovico permaneceu sentado elegantemente, compenetrado nos acordes fantásticos da orquestra. Todos que estavam ali no gramado olharam fixamente para o palco: os espectadores e o cachorro. Maravilha!
Diante da situação, pus-me a refletir sobre tudo aquilo e veio-me à mente a história de dois outros cachorros que também tinham manias de gente. O primeiro foi Baleia, a cachorra do Fabiano, da Sinhá Vitória, do menino mais velho e do menino mais moço, personagens da obra Vidas Secas, do romancista Graciliano Ramos. O outro foi Fidélis, cachorro que falava com os olhos, personagem do romance “A Sétima Caverna”, de minha autoria, lançado pela Editora Hemisfériio Sul. Estes dois cachorros tinham muito a ver com aquele Border Collie que aplaudia a orquestra com seus latidos cadenciados.
E assim, na mais perfeita harmonia entre pessoas e animais e ainda havia os aviões levantando voo, a manhã encerrou-se com a Sinfonia número 7, de Ludwig van Bethowen. E para confirmar, durante a longa execução, não havia latidos de cães, nem conversas entre pessoas. Só encantamento.
E como todas as coisas do mundo passam, também se passou a manhã no Ibirapuera. Os músicos guardaram seus instrumentos e as pessoas e os cachorros dispersaram-se. Ludovico, mais uma vez, olhou para o palco e deu três latidos de despedida. O maestro na sua sensibilidade musical percebeu o comportamento canino, espiou para o cachorro e deu um leve sorriso. No mais, permaneceram o gramado verde, mesmo no frio do inverno antecipado e os aviões levantando voo no aeroporto de Congonhas.
Ah! Permaneceram também as lembranças que ora registro nesta crônica.


*O autor é professor, escritor e poeta. Reside me Ibirama/SC. Sua principal obra é o romance A sétima caverna, publicado pelo Editora Hemisfério Sul.

2 comentários:

  1. A arte seja na forma de sinfonia, cores ou melodias pode encantar até o mais empedernido
    dos seres.
    Animais e plantas tem alma.
    Abraços

    ResponderExcluir
  2. Peço licença a Harry Wiese, para acrescentar o
    trecho do texto Os Bons Cães, de Baudelaire, o primeiro autor moderno a elevar o cão à estatura de filósofo:

    "Aonde vão os cães - perguntais, homens pouco atentos? Vão a negócios. Encontros de negócios, encontros de amor. Através da bruma, através da neve, através da lama, sob a canícula mordente, sob a chuva, a jorrar, eles vão, vêm, trotam, passam sob os carros, excitados pelas pulgas, pela paixão, pela necessidade ou pelo dever. Tal como nós, eles se levantaram cedo, e ganham a vida ou correm aos seus prazeres."
    Abração do,
    José Calvino
    RecifeOlinda

    ResponderExcluir