sábado, 28 de maio de 2011







O baile do colibri nu



* Por Dalton Trevisan

SENTADINHO na escada, mão no queixo: a carinha enrugada no corpo do menino de oito anos. Em cada olhinho suspensa uma lágrima vermelha.
O doutor abre a porta. Mais que o João se esforce, não acodem as pernas.
— Fique sentado, rapaz. O que foi?
— O juiz me chamou. Quer pensão, a desgracida.
— A Maria?
— Amanhã no fórum. Dez horas. Levo o doutor comigo.
— O oficial de justiça que intimou?
— Dou uma nota para o doutor.
— Não posso, João. Amanhã eu viajo. Ouça meu conselho.
— Então não vou.
— Se foi chamado, vá. Mas não assine nada. Entendeu bem?
— Estou carpindo a rocinha.
— Que rocinha é essa?
Chega-se o parceiro das noitadas no Balaio de Pulga.
— Sou o Carlito, doutor. É uma rocinha de milho. Às meias com o Perereca.
— Ih, meu Deus. Logo o Perereca. Não é ele que bebe?
— Mais que o pai, doutor.
— Só milho torto há de vingar.
João cabeceia, um fio de baba fosfórea no queixo imberbe.
— Oi, João. Está me ouvindo?
Exibe a lingüinha azul do vinagrão — uma ostra que não pode engolir nem cuspir.
— O doutor vai. Não é, doutor?
— Já disse que não. Você deve ir. Só não assine.
Derruba no joelho o chapelão de palha, um risco branco na testinha lavada de suor frio.
— Já sei. Não assino.
Grugruleja um palavrão e oscila perigosamente no degrau.
— Carlito, não é? Me diga. Ele quis mesmo se enforcar?
Subiu na cadeira, enfiou a corda no pescoço, o nó correu. E caiu de pé bem vivinho.
— E a Maria? Está com o André?
— Do André não sei. Com o Joaquim é todo dia. Não tem segredo.
— Como é que pode? Feia, peluda, óculo escuro?
— Tem mais, doutor. Quando estavam juntos, o João voltou de repente. As duas da tarde. Deu com ela e o Juca. Na cama.
— Não adiantou prendê-la na garupa da bicicleta.
— Pelas costas só xinga de Colibri o hominho.
— E os barracos quantos são?
— Eram três. Agora dois. Vendeu um, que foi desmanchado. E bebeu todinho no Balaio de Pulga.
O triste colibri ressona, bolhas de espuma no canino de ouro.
— Ei, João? E a tua filha, João? Com quem ficou?
— Diabo de nego. Toquei o porco do nego.
— Você não respondeu. Está com você? Ou com a Maria?
— Comigo. Tanto quer saber. Ajeitei o paiol para o nego.
— Que negro é esse?
— O negro fez arte com a menina, doutor.
— Peste de nego. O nego sujo.
— Deu queixa para o sargento?
Sacode a cabecinha grisalha, bate a pestana que já se fecha.
— O doutor não sabia do baile nu?
— Epa, que história é essa?
— O negro já de olho na menina. Que é bonitinha. Embebedou o João. O negro na cachaça. O João no vinho tinto. E deu a idéia do baile.
— Barbaridade.
— Trouxe a filha do Gervásio para o Colibri. E quis para ele a menina.
— Ah, negro safado.
— O doutor sabe aquela radiolinha do João? Ligou a todo o volume. Nosso Colibri, o mais pequeno e barulhento. No melhor da festa os vizinhos reclamaram do barulho. E a polícia acabou com o baile.
— Não me diga.
— Quando chegou o sargento viu todos pelados. O negro com a menina do João. E ele com a filha do Gervásio. De doze anos. Que tinha fugido do asilo.
Daí o Carlito ri gostoso. O doutor dá um passo para trás.
— Ele se gabou. Fui preso, sim. E batia no peitinho sem nenhum cabelo.Antes derrubei dois praças.
— Pouca vergonha, João.
— Dele não é a culpa, doutor. Foi o negro. O sargento abriu a porta, a música bem alto e todo mundo nu.
— Com a menina de doze anos!
— Tivesse mais, doutor, já seria maior que ele.
— Não fez mal para ela. O negro, esse, fugiu pela janela. Mas o João foi fácil. Carregado — nu e esperneando de botinha vermelha — no colo de um praça. Sem tempo de alcançar a pistolinha.
— O último dos heróis.
— Levaram para a cadeia. As meninas na sala do sargento. Não é que o velho Gervásio quis dar parte do João? A guria, sorte dele, estava inteira.
—...
— O negro, sim, perdeu a filha do João. Um negro daquele tamanho, já viu? E o juiz casou com separação.
— De corpos. E o bandido guardou a menina?
- O João arrumou para os dois o ranchinho dos fundos.
Furioso o colibri ostenta na cinta o punhal e a pistolinha.
— Esse nego porco. O diabo do nego sujo.
— Entendeu bem, João? Você precisa ir. Nada não assine.
Repuxa no pescocinho o enorme lenço encarnado.
— O doutorzinho é meu pai.
— Só faça trato de boca.
— Os três barracos são meus. O hominho que ganhou. Foi o hominho que trabalhou.
— Metade é do hominho. E metade da Maria.
— Não se fie, doutor. Essa é uma traidora: De que lado o doutor está?
— Vá para casa, João. Dormir na cama.
O gigante dos colibris ergue-se no salto da botinha.
— Acuda o hominho.
Pende para cá e para lá, upa, abraçado na palmeira.
— Não vai longe esse hominho.

Texto extraído do livro "Virgem louca, loucos beijos", Ed. Record - Rio de Janeiro - 1979, pág. 74.



• Escritor famoso por seus livros de contos, especialmente “O vampiro de Curitiba”.

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