domingo, 15 de maio de 2011







Vou comprar

* Por Rubem Costa

Vou comprar o fantasma de um mundo que já não é, a sombra das horas mortas e a inércia do tempo imóvel.
Vou comprar um bilhete de trem encalhado, e o apito da “Maria Fumaça”, que, fungando nas curvas, resfolegava no aclive para levar às meninas recados de amor.
Vou comprar uma entrada de cinema mudo para rir de Carlitos e Buster Keaton na matinée do Rink, devorando um cartucho de pipoca enlambuzada de mel.
Vou comprar uma nesga de sol no jardim, a doçura da chuva caindo, um barquinho de papel navegando na enxurrada e um arco-íris riscado no céu.
Vou comprar a correria do pega-ladrão, um pião rodando no chão e a criançada cantando a “canoa virou” — “foi por culpa da Maria que não soube remar”.
Vou comprar o crepúsculo das tardes de verão e a alegria de um moleque vadio empinando papagaio.
Vou comprar as peladas de fim de tarde, machucando os pés descalços no pedrisco da pracinha do Botafogo.
Vou comprar um pedaço de lembrança embrulhada na inocência de menino que queria aprender a nadar para mergulhar no rio Atibaia.
Vou comprar, sim senhores, vou comprar a felicidade insuspeita de um momento de paz, vendo a mãe fritar bolinho de chuva pra filharada explodir comendo.
Vou comprar um exemplar da edição comemorativa dos 100 Anos do Tico-Tico, revistinha que acabou na década de 60. Vou comprar para ver de perto meus heróis dos sete anos, companheiros de molecagem, modelos de traquinagens, exemplos de lealdade que me ensinaram ser amigo. Quero conversar com Chiquinho, Reco-reco, Bolão e Azeitona e aprender com Zé Macaco um conceito de moral, enquanto o Dr. Sabe-tudo ensina português, lecionando geografia. E quando Pipoca me disser: — Puxa, já faz oitenta anos, você sumiu, por onde andou ? — vou arrumar o time antigo, com vontade de chorar.
Vou rever, no meio ali da rua — feliz porque era sábado — um garoto que não cresceu, um menino jogando bola bem no fundo da memória. Vou comprar o velho calendário com estampa de São Jorge, tão antigo que nem sei, tão alegre, tão festivo que eu nem percebia o dia envelhecendo. Ah, não desdenhe, leitor tão jovem, não desdenhe destes “recuerdos”. Eles estão dentro de mim. Estão dentro de ti. Estão dentro do homem. Vão conosco a toda parte, tanto quanto a saga de Joãozinho e Maria que seguem pela floresta, deixando pedrinhas brancas atrás de si, para marcar o caminho. Ruim é que os seixos esquecidos vão sendo trocados por miolos que as aves do destino engolem.
E depois, com as veredas desarrumadas, não há mais como voltar. Só quem volta é a saudade que chega de repente, sem sequer bater à porta. A única saída, se formos espertos, é aprender com os miniaturistas chineses que esculpem nas sementes de cereja a história de um mundo que se desfez. Ninguém a poderá ver, senão nós mesmos, espiando através das frestas da muralha em que nos encarceramos; único jeito de contemplar, à luz do sol poente concentrada na escultura da existência, a procissão singular das coisas que já não são, das vidas que se encantaram.
*
Vou comprar! Vou comprar um pedaço de saudade recheado de alegria pra contar aos meus bisnetos que um dia fui criança — que também sonhei na vida. E — no dia dos namorados — vou comprar um jarro de ternura para ofertar à Marilene com um poema de afeição.
*
Poema?
É a busca ardente de uma emoção sem nome. Anseio de verter em forma de palavras, o incontido sem forma que o coração recolhe.
Hoje, senti vontade
de dizer-te em versos
poema que fosse
um sonho de paz,
melodia de brisa
perpassando em sussurro,
num canto de afeto,
o encanto da vida.
Olhando, entanto,
na estante,
teu retrato eu vi.
Surpreso, quedei-me mudo.
Escrever ? Escrever por quê ?
Se na foto,
enquadrado na moldura,
meu poema de amor
já estava escrito

• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

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