Amor de teclado
* Por Mara Narciso
O chat UOL idades 40/50 está lotado na noite de sábado. É o ano 2001. Não há ICQ nem Messenger, apenas o recurso de falar no reservado. E quem é exibicionista fala no aberto, para que todas as 40 pessoas da sala virtual leiam. Outros, ao serem rejeitados, pôem-se a xingar quem o descartou. Quase ninguém maduro está familiarizado com o mundo virtual, que apenas começa a se popularizar. Um homem e uma mulher com seus apelidos H-58 e Bela, teclam no aberto, jogam a fala para o reservado e a conversa engata. Estão acometidos de solidão a dois. Ambos casados, ele em Salvador e ela em São Paulo, falam em carências e em desejo e uma excitação os acomete. Falar com desconhecidos causa voltagem máxima, assim acontece o sexo virtual, sem saber quem é a pessoa do outro lado.
Noutros encontros vêm aquelas perguntas que adultos tanto apreciam, aquelas que mais parecem saídas da aritmética: quantos anos, quantos filhos, qual a idade deles, o que faz, quanto ganha (ou quase isso), quantos km os separam, qual o número do telefone. Depois falam em planos e sonhos. Começa a troca de fotos, precaríssima na ocasião de internet discada. Vai acontecendo o reconhecimento e aproximação. Surgem os pontos incompatíveis e os semelhantes. Ele tem 58 anos, é casado e tem três filhos casados. Trabalha com a voz, gravando publicidade que divulga casas comerciais em carros. Mora bem, numa casa com quatro quartos, todos com ar condicionado, cortinas de veludo vermelho e piscina com cascata. Ela tem 44 anos, também é casada e tem um casal de filhos. É comerciante e o marido advogado. Ele é evangélico, e ela católica. Ele canta no coro da igreja e está envolvido com as coisas da religião. Ela é não praticante.
A curiosidade e atração iniciais são substituídas por uma dependência. Marcam e se “falam” no chat, em salas vazias pelo menos três vezes ao dia. Mandam e-mails trocando confidências, e entram sempre que podem. Virou obsessão do casal, e um se torna o primeiro e último pensamento do dia para o outro. Tudo fica por conta da idealização, pois as poucas fotos trocadas, e a ausência de webcam na época, não permitem saber como o outro seria. Telefone celular é caríssimo para longas distâncias, mas um dia ele liga. Ela quase cai com o susto. Fica enfeitiçada, suspensa no ar, porque é a voz mais bonita que ouviu na vida. Impossível não se apaixonar por aquela voz.
O que sustenta o namoro é o mistério, os e-mails, a conversa no chat, as fotos de papel, os cartões postais, os telefonemas, o sexo e os presentes. Diante da paixão bilateral de todo o tamanho, o homem propôs a ela irem morar em Palmas, no Tocantins. Ele fugiria de casa, de carro, a pegaria para juntos irem embora, e depois formalizariam as separações. Mesmo estando louca de amor, ela discorda. Acha melhor agir com cautela, conhecerem-se um pouco mais, para depois tomarem a decisão de se verem, e ficarem juntos. O casamento dele está falido, apenas se aguentam, mas o casamento dela recebe tempero com esse amor virtual. A paixão a permite amar dois homens ao mesmo tempo. Durante meio ano o casal vive na necessidade do outro, pensando no quanto se amam, e se desejam. A receptividade dela vem de uma doença grave. Está com medo de morrer, e aceita sem culpa o carinho que vem.
Chega pelo correio uma carta de amor, um pequeno rádio e um relógio de pulso. Ambos estão amando, daquele jeito adolescente, com um olhar bobo que apenas os apaixonados têm. O caso extraconjugal acentua o interesse dela no marido. A vida deles que era boa, ficou melhor, com sexo selvagem. Mas o estado de êxtase acaba de súbito. O namorado virtual liga numa tarde de domingo, dizendo que a esposa achou o rascunho da carta de amor, e num acesso de fúria jogou o monitor, que naquele tempo era pesado, no rosto dele. A agressão cortou o seu lábio, sendo atendido no hospital.
Os filhos reuniram-se para lhe dizer que ele era um velho decrépito se portando de forma ridícula. O homem reage, e depois que os filhos se foram, decide continuar. O computador fica no escritório, no segundo andar. Arruma um monitor sobressalente e passa pela esposa no começo da escada que, com um pano na testa, reclama de forte dor de cabeça. Sobe, e vai falar com a outra. A esposa não se dá por vencida. Chama o pastor da igreja deles, que vem em seu socorro. No dia dessa visita, anunciada por ele, após um telefonema meloso e uma marcação de encontro no chat, ele não aparece.
Ela fica esperando e chorando. Olha sem ver, de tantas lágrimas. Não acredita que não mais falará com ele, não mais ouvirá a sua voz maravilhosa, seu grande estímulo de viver. Ele jamais aparece. O choro dura cem dias. Então ela se cala. Velhos se apaixonam pela internet, e choram quando o amor acaba.
* Médica endocrinologista, jornalista profissional, acadêmica da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
* Por Mara Narciso
O chat UOL idades 40/50 está lotado na noite de sábado. É o ano 2001. Não há ICQ nem Messenger, apenas o recurso de falar no reservado. E quem é exibicionista fala no aberto, para que todas as 40 pessoas da sala virtual leiam. Outros, ao serem rejeitados, pôem-se a xingar quem o descartou. Quase ninguém maduro está familiarizado com o mundo virtual, que apenas começa a se popularizar. Um homem e uma mulher com seus apelidos H-58 e Bela, teclam no aberto, jogam a fala para o reservado e a conversa engata. Estão acometidos de solidão a dois. Ambos casados, ele em Salvador e ela em São Paulo, falam em carências e em desejo e uma excitação os acomete. Falar com desconhecidos causa voltagem máxima, assim acontece o sexo virtual, sem saber quem é a pessoa do outro lado.
Noutros encontros vêm aquelas perguntas que adultos tanto apreciam, aquelas que mais parecem saídas da aritmética: quantos anos, quantos filhos, qual a idade deles, o que faz, quanto ganha (ou quase isso), quantos km os separam, qual o número do telefone. Depois falam em planos e sonhos. Começa a troca de fotos, precaríssima na ocasião de internet discada. Vai acontecendo o reconhecimento e aproximação. Surgem os pontos incompatíveis e os semelhantes. Ele tem 58 anos, é casado e tem três filhos casados. Trabalha com a voz, gravando publicidade que divulga casas comerciais em carros. Mora bem, numa casa com quatro quartos, todos com ar condicionado, cortinas de veludo vermelho e piscina com cascata. Ela tem 44 anos, também é casada e tem um casal de filhos. É comerciante e o marido advogado. Ele é evangélico, e ela católica. Ele canta no coro da igreja e está envolvido com as coisas da religião. Ela é não praticante.
A curiosidade e atração iniciais são substituídas por uma dependência. Marcam e se “falam” no chat, em salas vazias pelo menos três vezes ao dia. Mandam e-mails trocando confidências, e entram sempre que podem. Virou obsessão do casal, e um se torna o primeiro e último pensamento do dia para o outro. Tudo fica por conta da idealização, pois as poucas fotos trocadas, e a ausência de webcam na época, não permitem saber como o outro seria. Telefone celular é caríssimo para longas distâncias, mas um dia ele liga. Ela quase cai com o susto. Fica enfeitiçada, suspensa no ar, porque é a voz mais bonita que ouviu na vida. Impossível não se apaixonar por aquela voz.
O que sustenta o namoro é o mistério, os e-mails, a conversa no chat, as fotos de papel, os cartões postais, os telefonemas, o sexo e os presentes. Diante da paixão bilateral de todo o tamanho, o homem propôs a ela irem morar em Palmas, no Tocantins. Ele fugiria de casa, de carro, a pegaria para juntos irem embora, e depois formalizariam as separações. Mesmo estando louca de amor, ela discorda. Acha melhor agir com cautela, conhecerem-se um pouco mais, para depois tomarem a decisão de se verem, e ficarem juntos. O casamento dele está falido, apenas se aguentam, mas o casamento dela recebe tempero com esse amor virtual. A paixão a permite amar dois homens ao mesmo tempo. Durante meio ano o casal vive na necessidade do outro, pensando no quanto se amam, e se desejam. A receptividade dela vem de uma doença grave. Está com medo de morrer, e aceita sem culpa o carinho que vem.
Chega pelo correio uma carta de amor, um pequeno rádio e um relógio de pulso. Ambos estão amando, daquele jeito adolescente, com um olhar bobo que apenas os apaixonados têm. O caso extraconjugal acentua o interesse dela no marido. A vida deles que era boa, ficou melhor, com sexo selvagem. Mas o estado de êxtase acaba de súbito. O namorado virtual liga numa tarde de domingo, dizendo que a esposa achou o rascunho da carta de amor, e num acesso de fúria jogou o monitor, que naquele tempo era pesado, no rosto dele. A agressão cortou o seu lábio, sendo atendido no hospital.
Os filhos reuniram-se para lhe dizer que ele era um velho decrépito se portando de forma ridícula. O homem reage, e depois que os filhos se foram, decide continuar. O computador fica no escritório, no segundo andar. Arruma um monitor sobressalente e passa pela esposa no começo da escada que, com um pano na testa, reclama de forte dor de cabeça. Sobe, e vai falar com a outra. A esposa não se dá por vencida. Chama o pastor da igreja deles, que vem em seu socorro. No dia dessa visita, anunciada por ele, após um telefonema meloso e uma marcação de encontro no chat, ele não aparece.
Ela fica esperando e chorando. Olha sem ver, de tantas lágrimas. Não acredita que não mais falará com ele, não mais ouvirá a sua voz maravilhosa, seu grande estímulo de viver. Ele jamais aparece. O choro dura cem dias. Então ela se cala. Velhos se apaixonam pela internet, e choram quando o amor acaba.
* Médica endocrinologista, jornalista profissional, acadêmica da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
Mundinho obscuro e aparentemente confortável
ResponderExcluironde as ilusões acabam ocupando as brechas.
Ótimo texto Mara.
Abraços
Desde ontem não estávamos conseguindo postar no Literário.
ResponderExcluirSegue abaixo o e-mail que Marcelo Sguassábia me enviou. Espero que o blog aceite:
Marcelo Pirajá Sguassábia
25 de maio de 2011 12:17
Oi, Mara. Fui comentar seu ótimo texto no Literário, mas a postagem de comments está com problema. Segue abaixo, com meu abraço:
Bacana, Mara. Mesmo sendo ficção, o texto reflete uma nova e inesperada realidade - com a qual é preciso conviver, com suas dores, delícias e ciladas. Parabéns.
Verdade Núbia. O amor virtual pega esses pequenos espaços da vida contemporânea tão corrida.E no final, são apenas ilusões.
ResponderExcluirMarcelo, agradeço o seu esforço para se comunicar comigo. Obrigada aos dois.