Beleza congelada
* Por Pedro J. Bondaczuk
Os objetos criados pela ciência e pela tecnologia, para facilitar nossas vidas, à disposição de um número considerável de pessoas no mundo atual, são extraordinários e alguns até "mágicos". Nem sempre (ou quase nunca) paramos para pensar nessas grandes invenções, a maioria frutos da ousadia de homens muito talentosos – alguns até esquecidos por esta geração, beneficiária de seus inventos – e desenvolvida a partir dos últimos dez anos do século XIX, o verdadeiro "Século das Luzes".
Telefone, automóvel, avião, receptor de rádio, aparelho de televisão, imprensa, fotografia, computador pessoal, e outros tantos equipamentos e máquinas, tornaram-se tão corriqueiros, acessíveis e banais, que quase ninguém se dá conta da sua real importância. Entre essas inúmeras invenções, que vieram facilitar nosso cotidiano, ou até lhe dar um certo toque de magia e encantamento, uma das que mais me fascinam é a fotografia. Num toque de extrema inventividade, alguém conseguiu descobrir que era possível, com o simples comprimir de um botão, reter e perpetuar uma imagem, de pessoa ou coisa, em película de filme. Pode parecer tola – aos que não sabem valorizar a genialidade – minha empolgação. Mas creiam, não é. Essa possibilidade de congelar uma fração do tempo e perpetuá-la é magia, é milagre, é feitiçaria.
Tenho, como tantas e tantas pessoas no mundo, o trivial e inofensivo (mas às vezes dispendioso) hábito de colecionar fotos. Possuo uma infinidade delas, de várias fases e circunstâncias. Algumas, são banais e descartáveis, de inocentes passeios turísticos. Outras, se revestem de enorme importância sentimental e afetiva. Perpetuam momentos que considero os mais marcantes da minha vida. Álbuns e mais álbuns empilham-se, um tanto desordenados, em uma prateleira de casa, com imagens de pessoas queridas, muitas das quais já morreram, e de acontecimentos de enorme importância em minha trajetória pessoal ou pública (trabalhando na redação dos vários jornais por onde passei; das minhas formaturas; do meu casamento; do nascimento, batizado e diversas fases do desenvolvimento dos meus quatro filhos; do meu ingresso na Academia Campinense de Letras; da entrega, na Câmara Municipal de Campinas, do título de Cidadão Campineiro, da homenagem que a Câmara Municipal me prestou ao me conferir o Diploma de Mérito Jornalístico Bráulio Mendes Nogueira, etc.).
Por mais aguda e receptiva que seja a minha memória, jamais conseguiria reter tantos e tão gratos acontecimentos, com tamanha precisão e riqueza de detalhes, a não ser dessa forma. Ou seja, através de fotos, muitas das quais desfocadas ou tremidas. Não importa... A este propósito, vem-me à memória o trecho de uma lapidar crônica de Paulo Mendes Campos, intitulada "Fora da Seqüência", publicada na revista Manchete em 27 de outubro de 1967, que diz: "...Com ou sem arte, há fotografias que não cumprem o dever social; entram em nossa vida como um ladrão noturno, sobressaltam nossa comédia, contando uma história absurda que não estava no texto. Nelas, não o tempo é capturado, mas, incompreensivelmente, é a própria passagem do tempo que se expressa visualmente..."
Tenho, entre milhares de imagens da minha coleção, uma foto exatamente com essas características: que entrou em minha vida "como um ladrão noturno". Guardei-a, ciosamente, por um motivo mais sutil (diria até misterioso), do que a simples recordação de um fato ou pessoa. Não é de nenhum parente, amigo ou conhecido. Pelo contrário. Nunca vi, cara a cara, a fotografada (pois é mulher). Nem é de algum momento especial.
Trata-se de uma foto publicada no "O Estado de São Paulo", na contracapa da edição da Semana Santa de 1958, que por alguma razão estranha, com a qual não atino até hoje e que não consigo explicar, resolvi recortar e guardar em minha enorme hemeroteca, entre milhares de crônicas, artigos e notícias curiosas estampados nos jornais da época. Sequer traz legenda. Não há explicações sobre as circunstâncias em que foi tirada, nem traz a identificação da personagem. Vem acompanhada, apenas, de um texto curto, seco, incisivo e direto: "O anjo chora". Só isso!.
A imagem mostra uma garotinha, de no máximo nove anos de idade... chorando, é claro! A menina participava de uma procissão, em São Paulo, alusiva à Sexta-Feira da Paixão, pelo que se deduz da matéria ao lado, por sinal, pouco esclarecedora e sem interesse. Guardei, por 53 anos, o recorte única e exclusivamente por causa da imagem. Porque é poética, é lírica, é comovente. É de sutil e profunda beleza. Mas, por que a garotinha estava chorando? Boa pergunta! Claro que não sei responder! E nem importa. Só posso conjeturar. Mas sua expressão de tristeza é tão bela, tão comovente, tão frágil e desprotegida... que sensibilizou, até, o coração do duro e empedernido adolescente que eu era, naqueles empolgantes e românticos "anos dourados".
A menina estava vestida de anjo, o que lhe caía muito bem. Daí a curta e sutil legenda. Não precisava de mais... Nem mesmo o nome do fotógrafo é mencionado, expediente obrigatório nos jornais de hoje. A imagem, pela simplicidade, espontaneidade e uma certa pungência, é digna mesmo da palheta de algum dos tantos e talentosos gênios da pintura, que perpetuaram seus nomes na história das artes plásticas – Leonardo da Vinci, Rembrandt, Monet, Rubens, Gauguin, etc. – com obras-primas de sensibilidade e lirismo, que hoje são adquiridas, a peso de ouro, por ricos colecionadores.
E quem era essa garotinha? Que fim levou? No que se transformou, no correr desse mais de meio século, depois do "congelamento" daquela fração de segundos de uma Sexta-Feira Santa de 1958? É mãe de família? É artista? É profissional liberal? Médica, advogada, dentista? Professora? Jornalista? Doméstica? Prostituta? Não! Isto, definitivamente, não!
Não é possível que um anjo de tanta graça, inocência e luz, que comoveu o coração empedernido do então cínico e insensível adolescente – que guardou, por 53 anos, sua imagem angelical – haja caído tanto! Mas não posso garantir nada... Hoje, se estiver viva, deve ser uma suave vovó. Ou, quem sabe, uma senhora solitária, amarga e rancorosa. A vida é cheia de surpresas! Talvez seja a mulher que tanto procurei, por caminhos muitas vezes tortuosos. É possível que seja a minha outra metade, aquela alma gêmea pela qual tanto ansiei, em vão. Talvez... Quem sabe...? Mas, pelo milagre da fotografia, minha incógnita e chorosa garotinha será, para sempre – pelo menos enquanto não me desfizer deste recorte de jornal amarelado e quase em decomposição – apenas meu ideal de beleza, fonte de poesia e inspiração, sublime "anjo que chora". Bem escreveu Alexandre Herculano, no seu clássico romance, "Eurico, o Presbítero": "Que fora a vida se nela não houvera lágrimas?"
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
* Por Pedro J. Bondaczuk
Os objetos criados pela ciência e pela tecnologia, para facilitar nossas vidas, à disposição de um número considerável de pessoas no mundo atual, são extraordinários e alguns até "mágicos". Nem sempre (ou quase nunca) paramos para pensar nessas grandes invenções, a maioria frutos da ousadia de homens muito talentosos – alguns até esquecidos por esta geração, beneficiária de seus inventos – e desenvolvida a partir dos últimos dez anos do século XIX, o verdadeiro "Século das Luzes".
Telefone, automóvel, avião, receptor de rádio, aparelho de televisão, imprensa, fotografia, computador pessoal, e outros tantos equipamentos e máquinas, tornaram-se tão corriqueiros, acessíveis e banais, que quase ninguém se dá conta da sua real importância. Entre essas inúmeras invenções, que vieram facilitar nosso cotidiano, ou até lhe dar um certo toque de magia e encantamento, uma das que mais me fascinam é a fotografia. Num toque de extrema inventividade, alguém conseguiu descobrir que era possível, com o simples comprimir de um botão, reter e perpetuar uma imagem, de pessoa ou coisa, em película de filme. Pode parecer tola – aos que não sabem valorizar a genialidade – minha empolgação. Mas creiam, não é. Essa possibilidade de congelar uma fração do tempo e perpetuá-la é magia, é milagre, é feitiçaria.
Tenho, como tantas e tantas pessoas no mundo, o trivial e inofensivo (mas às vezes dispendioso) hábito de colecionar fotos. Possuo uma infinidade delas, de várias fases e circunstâncias. Algumas, são banais e descartáveis, de inocentes passeios turísticos. Outras, se revestem de enorme importância sentimental e afetiva. Perpetuam momentos que considero os mais marcantes da minha vida. Álbuns e mais álbuns empilham-se, um tanto desordenados, em uma prateleira de casa, com imagens de pessoas queridas, muitas das quais já morreram, e de acontecimentos de enorme importância em minha trajetória pessoal ou pública (trabalhando na redação dos vários jornais por onde passei; das minhas formaturas; do meu casamento; do nascimento, batizado e diversas fases do desenvolvimento dos meus quatro filhos; do meu ingresso na Academia Campinense de Letras; da entrega, na Câmara Municipal de Campinas, do título de Cidadão Campineiro, da homenagem que a Câmara Municipal me prestou ao me conferir o Diploma de Mérito Jornalístico Bráulio Mendes Nogueira, etc.).
Por mais aguda e receptiva que seja a minha memória, jamais conseguiria reter tantos e tão gratos acontecimentos, com tamanha precisão e riqueza de detalhes, a não ser dessa forma. Ou seja, através de fotos, muitas das quais desfocadas ou tremidas. Não importa... A este propósito, vem-me à memória o trecho de uma lapidar crônica de Paulo Mendes Campos, intitulada "Fora da Seqüência", publicada na revista Manchete em 27 de outubro de 1967, que diz: "...Com ou sem arte, há fotografias que não cumprem o dever social; entram em nossa vida como um ladrão noturno, sobressaltam nossa comédia, contando uma história absurda que não estava no texto. Nelas, não o tempo é capturado, mas, incompreensivelmente, é a própria passagem do tempo que se expressa visualmente..."
Tenho, entre milhares de imagens da minha coleção, uma foto exatamente com essas características: que entrou em minha vida "como um ladrão noturno". Guardei-a, ciosamente, por um motivo mais sutil (diria até misterioso), do que a simples recordação de um fato ou pessoa. Não é de nenhum parente, amigo ou conhecido. Pelo contrário. Nunca vi, cara a cara, a fotografada (pois é mulher). Nem é de algum momento especial.
Trata-se de uma foto publicada no "O Estado de São Paulo", na contracapa da edição da Semana Santa de 1958, que por alguma razão estranha, com a qual não atino até hoje e que não consigo explicar, resolvi recortar e guardar em minha enorme hemeroteca, entre milhares de crônicas, artigos e notícias curiosas estampados nos jornais da época. Sequer traz legenda. Não há explicações sobre as circunstâncias em que foi tirada, nem traz a identificação da personagem. Vem acompanhada, apenas, de um texto curto, seco, incisivo e direto: "O anjo chora". Só isso!.
A imagem mostra uma garotinha, de no máximo nove anos de idade... chorando, é claro! A menina participava de uma procissão, em São Paulo, alusiva à Sexta-Feira da Paixão, pelo que se deduz da matéria ao lado, por sinal, pouco esclarecedora e sem interesse. Guardei, por 53 anos, o recorte única e exclusivamente por causa da imagem. Porque é poética, é lírica, é comovente. É de sutil e profunda beleza. Mas, por que a garotinha estava chorando? Boa pergunta! Claro que não sei responder! E nem importa. Só posso conjeturar. Mas sua expressão de tristeza é tão bela, tão comovente, tão frágil e desprotegida... que sensibilizou, até, o coração do duro e empedernido adolescente que eu era, naqueles empolgantes e românticos "anos dourados".
A menina estava vestida de anjo, o que lhe caía muito bem. Daí a curta e sutil legenda. Não precisava de mais... Nem mesmo o nome do fotógrafo é mencionado, expediente obrigatório nos jornais de hoje. A imagem, pela simplicidade, espontaneidade e uma certa pungência, é digna mesmo da palheta de algum dos tantos e talentosos gênios da pintura, que perpetuaram seus nomes na história das artes plásticas – Leonardo da Vinci, Rembrandt, Monet, Rubens, Gauguin, etc. – com obras-primas de sensibilidade e lirismo, que hoje são adquiridas, a peso de ouro, por ricos colecionadores.
E quem era essa garotinha? Que fim levou? No que se transformou, no correr desse mais de meio século, depois do "congelamento" daquela fração de segundos de uma Sexta-Feira Santa de 1958? É mãe de família? É artista? É profissional liberal? Médica, advogada, dentista? Professora? Jornalista? Doméstica? Prostituta? Não! Isto, definitivamente, não!
Não é possível que um anjo de tanta graça, inocência e luz, que comoveu o coração empedernido do então cínico e insensível adolescente – que guardou, por 53 anos, sua imagem angelical – haja caído tanto! Mas não posso garantir nada... Hoje, se estiver viva, deve ser uma suave vovó. Ou, quem sabe, uma senhora solitária, amarga e rancorosa. A vida é cheia de surpresas! Talvez seja a mulher que tanto procurei, por caminhos muitas vezes tortuosos. É possível que seja a minha outra metade, aquela alma gêmea pela qual tanto ansiei, em vão. Talvez... Quem sabe...? Mas, pelo milagre da fotografia, minha incógnita e chorosa garotinha será, para sempre – pelo menos enquanto não me desfizer deste recorte de jornal amarelado e quase em decomposição – apenas meu ideal de beleza, fonte de poesia e inspiração, sublime "anjo que chora". Bem escreveu Alexandre Herculano, no seu clássico romance, "Eurico, o Presbítero": "Que fora a vida se nela não houvera lágrimas?"
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Deveria tê-la colocado aqui, para a nossa curiosidade. Quem sabe um "Procura-se" poderia lograr em êxito?
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