Força que calava a razão
A escravidão, uma das formas mais hediondas, cruéis, vis e covardes do animal homem, que o avilta e rebaixa ao nível bastante inferior ao de qualquer fera irracional, foi (ou é, posto que a prática persiste em algumas partes do mundo,embora de forma disfarçada) uma ação que remonta, provavelmente, aos mais primitivos arremedos de civilização, talvez mesmo à época das cavernas. Comportamento considerado, hoje, inconcebível pelas pessoas “normais”, era rigorosamente comum, notadamente nas três Américas, há apenas menos de 150 anos (no Brasil há somente 123). Despertava repúdio e nojo em bem poucas pessoas. A maioria considerava-o absolutamente “normal”.
Nos meus tempos de menino (faz tempo!!!), quando soube, pela primeira vez, da existência dessa prática, não acreditei. Achava então que ela não passava de histórias contadas pelos adultos para impressionar crianças inocentes. Não me passava pela cabeça que isso pudesse existir de fato. Achava que era de tamanha crueldade, que pessoa alguma agiria dessa forma.
Na escola primária, todavia, perdi a inocência, em idade em que já havia me conscientizado do alcance e da intensidade da maldade humana. Convenci-me, assustado e ainda um tanto incrédulo, que não se tratava de ficção. Horrorizado, acreditei, por fim, que determinados homens, há não muito tempo, ainda poucos anos antes do meu nascimento, tratavam semelhantes de forma mais dura e desumana até do que os animais de carga.
Consideravam-nos suas propriedades, meros “objetos”, que compravam e vendiam com a maior naturalidade, e dos quais dispunham como bem entendessem. Não compreendo como, agindo assim, podiam amar alguém e beijar, por exemplo, o rosto dos filhos ao chegarem em casa, sem peso na consciência. Ainda hoje, beirando as sete décadas de vida, tenho muita dificuldade em pensar, ouvir, tratar e escrever a respeito da escravidão, tão cruel e inacreditável essa prática ainda me parece. E olhem que sou jornalista, afeito aos maiores horrores e patifarias que existem, matérias-primas do meu ofício!
Na Europa – posto que na Rússia czarista alguma forma de servidão tenha persistido até a Revolução Bolchevique de 1917 – esse comportamento vil e escabroso foi abolido, pelo menos na maioria dos países, há pelo menos meio milênio ou mais. Nas Américas, todavia, persistiu até recentemente, de forma, digamos, “industrializada”, em que muita gente lucrava, e muito, e não apenas com a força de braços alheios, mas com o apresamento de escravos nos recantos da África em que essas pessoas viviam, com o seu transporte, venda, caça quando logravam fugir, etc. Muita fortuna no Novo Mundo, ostentada com empáfia e arrogância pelos descendentes ainda nos dias atuais, se fez dessa forma. Foi obtida não por esforço pessoal, talento e capacidade produtiva e gerencial, mas às custas da escravidão, que considero o pior dos roubos: o da liberdade, além do da força física dos escravizados.
No Brasil, essa prática hedionda e vil foi extinta por decreto, assinado pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea. Houve, claro, resistência por parte dos que se beneficiavam da escravidão que, com relutância, findaram por acatar a determinação legal, não sem ônus para a Monarquia e principalmente para os ex-cativos, abandonados ao deus-dará. A abolição, enfatize-se, foi o estopim para a queda do regime monárquico, pouco mais de um ano depois de instituída, com a proclamação da República.
Nos Estados Unidos, contudo, a libertação dos escravos provocou uma guerra civil, dramática e sangrenta, a da Secessão, que por pouco não estilhaça de vez a unidade dessa que é hoje a única superpotência do Planeta. E o autor dessa corajosa decisão, o 16º presidente norte-americano Abraham Lincoln, pagou com a vida por este então ousado gesto de humanidade e de racionalidade. Acabou assassinado, em 15 de abril de 1865 – quatro dias depois de haver prometido em discurso a concessão do direito a voto aos negros – por John Wilkes Booth, conhecido ator e espião confederado de Maryland, a tiros, no Teatro Ford, em Washington, enquanto assistia a uma peça na companhia da primeira-dama.
Os fatos que levaram Abraham Lincoln ao poder, sua primeira gestão e o drama da Guerra da Secessão, além da abolição da escravatura e os conflitos internos que levaram a esse desfecho, narrados com detalhes e analisados nas causas e conseqüências, valeram a um renomado historiador da Universidade de Columbia, Eric Foner, o cobiçado Pulitzer de 2011, na categoria História. Esse novaiorquino, que recém completou 68 anos de idade (nasceu em 7 de fevereiro de 1943), tido como simpatizante de esquerda, escreveu vários livros sobre o tema da escravidão, e não somente nos Estados Unidos, mas também na América Central e em especial no Haiti, onde os escravos se rebelaram, sob a liderança de Pierre Toussaint, e proclamaram a independência de uma parte da Ilha Hispaniola (a outra originou a atual República Dominicana).
O livro premiado é “The fiery trial: Abraham Lincoln and american slavery”. Trata-se de um prêmio para lá de merecido a este que é considerado o maior historiador contemporâneo, notadamente dos Estados Unidos, mas legítimo herdeiro do britânico Arnold Toynbee.
Sou, é verdade, um tanto suspeito para avaliar os méritos de Eric Foner. Explico o porque. Quando ainda menino, no último ano do antigo curso primário, elegi, como paradigmas, nos quais desejava espelhar minha vida (e que, de fato, venho espelhando) três personalidades, que reverencio ainda hoje e mais do que nunca.
A primeira foi Helen Keller, pela sua garra ao superar deficiências físicas aparentemente insuperáveis (era cega, surda e muda, mas aprendeu a se comunicar com o mundo, a falar e se tornou uma das maiores conferencistas do mundo). O segundo foi o doutor Albert Schweitzer, que abandonou brilhante carreira médica na Europa, mais especificamente na Alemanha, para cuidar, de graça. por mais de 60 anos consecutivos, até a sua morte, de leprosos na remota localidade de Lambaréne, na África. Ganhou, por isso, justíssimo Prêmio Nobel da Paz, em 1952. Finalmente o terceiro foi Abraham Lincoln, ex-lenhador, autodidata, que superou a pobreza e as dificuldades para se instruir e chegou à Presidência dos Estados Unidos (foi o primeiro presidente Republicano) e que pôs fim a essa vergonha que foi a escravidão. Tudo o que se refira a essas três personalidades, pois, tem, para mim, aspecto muito especial, caráter um tanto sagrado.
Boa leitura.
O Editor.
A escravidão, uma das formas mais hediondas, cruéis, vis e covardes do animal homem, que o avilta e rebaixa ao nível bastante inferior ao de qualquer fera irracional, foi (ou é, posto que a prática persiste em algumas partes do mundo,embora de forma disfarçada) uma ação que remonta, provavelmente, aos mais primitivos arremedos de civilização, talvez mesmo à época das cavernas. Comportamento considerado, hoje, inconcebível pelas pessoas “normais”, era rigorosamente comum, notadamente nas três Américas, há apenas menos de 150 anos (no Brasil há somente 123). Despertava repúdio e nojo em bem poucas pessoas. A maioria considerava-o absolutamente “normal”.
Nos meus tempos de menino (faz tempo!!!), quando soube, pela primeira vez, da existência dessa prática, não acreditei. Achava então que ela não passava de histórias contadas pelos adultos para impressionar crianças inocentes. Não me passava pela cabeça que isso pudesse existir de fato. Achava que era de tamanha crueldade, que pessoa alguma agiria dessa forma.
Na escola primária, todavia, perdi a inocência, em idade em que já havia me conscientizado do alcance e da intensidade da maldade humana. Convenci-me, assustado e ainda um tanto incrédulo, que não se tratava de ficção. Horrorizado, acreditei, por fim, que determinados homens, há não muito tempo, ainda poucos anos antes do meu nascimento, tratavam semelhantes de forma mais dura e desumana até do que os animais de carga.
Consideravam-nos suas propriedades, meros “objetos”, que compravam e vendiam com a maior naturalidade, e dos quais dispunham como bem entendessem. Não compreendo como, agindo assim, podiam amar alguém e beijar, por exemplo, o rosto dos filhos ao chegarem em casa, sem peso na consciência. Ainda hoje, beirando as sete décadas de vida, tenho muita dificuldade em pensar, ouvir, tratar e escrever a respeito da escravidão, tão cruel e inacreditável essa prática ainda me parece. E olhem que sou jornalista, afeito aos maiores horrores e patifarias que existem, matérias-primas do meu ofício!
Na Europa – posto que na Rússia czarista alguma forma de servidão tenha persistido até a Revolução Bolchevique de 1917 – esse comportamento vil e escabroso foi abolido, pelo menos na maioria dos países, há pelo menos meio milênio ou mais. Nas Américas, todavia, persistiu até recentemente, de forma, digamos, “industrializada”, em que muita gente lucrava, e muito, e não apenas com a força de braços alheios, mas com o apresamento de escravos nos recantos da África em que essas pessoas viviam, com o seu transporte, venda, caça quando logravam fugir, etc. Muita fortuna no Novo Mundo, ostentada com empáfia e arrogância pelos descendentes ainda nos dias atuais, se fez dessa forma. Foi obtida não por esforço pessoal, talento e capacidade produtiva e gerencial, mas às custas da escravidão, que considero o pior dos roubos: o da liberdade, além do da força física dos escravizados.
No Brasil, essa prática hedionda e vil foi extinta por decreto, assinado pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea. Houve, claro, resistência por parte dos que se beneficiavam da escravidão que, com relutância, findaram por acatar a determinação legal, não sem ônus para a Monarquia e principalmente para os ex-cativos, abandonados ao deus-dará. A abolição, enfatize-se, foi o estopim para a queda do regime monárquico, pouco mais de um ano depois de instituída, com a proclamação da República.
Nos Estados Unidos, contudo, a libertação dos escravos provocou uma guerra civil, dramática e sangrenta, a da Secessão, que por pouco não estilhaça de vez a unidade dessa que é hoje a única superpotência do Planeta. E o autor dessa corajosa decisão, o 16º presidente norte-americano Abraham Lincoln, pagou com a vida por este então ousado gesto de humanidade e de racionalidade. Acabou assassinado, em 15 de abril de 1865 – quatro dias depois de haver prometido em discurso a concessão do direito a voto aos negros – por John Wilkes Booth, conhecido ator e espião confederado de Maryland, a tiros, no Teatro Ford, em Washington, enquanto assistia a uma peça na companhia da primeira-dama.
Os fatos que levaram Abraham Lincoln ao poder, sua primeira gestão e o drama da Guerra da Secessão, além da abolição da escravatura e os conflitos internos que levaram a esse desfecho, narrados com detalhes e analisados nas causas e conseqüências, valeram a um renomado historiador da Universidade de Columbia, Eric Foner, o cobiçado Pulitzer de 2011, na categoria História. Esse novaiorquino, que recém completou 68 anos de idade (nasceu em 7 de fevereiro de 1943), tido como simpatizante de esquerda, escreveu vários livros sobre o tema da escravidão, e não somente nos Estados Unidos, mas também na América Central e em especial no Haiti, onde os escravos se rebelaram, sob a liderança de Pierre Toussaint, e proclamaram a independência de uma parte da Ilha Hispaniola (a outra originou a atual República Dominicana).
O livro premiado é “The fiery trial: Abraham Lincoln and american slavery”. Trata-se de um prêmio para lá de merecido a este que é considerado o maior historiador contemporâneo, notadamente dos Estados Unidos, mas legítimo herdeiro do britânico Arnold Toynbee.
Sou, é verdade, um tanto suspeito para avaliar os méritos de Eric Foner. Explico o porque. Quando ainda menino, no último ano do antigo curso primário, elegi, como paradigmas, nos quais desejava espelhar minha vida (e que, de fato, venho espelhando) três personalidades, que reverencio ainda hoje e mais do que nunca.
A primeira foi Helen Keller, pela sua garra ao superar deficiências físicas aparentemente insuperáveis (era cega, surda e muda, mas aprendeu a se comunicar com o mundo, a falar e se tornou uma das maiores conferencistas do mundo). O segundo foi o doutor Albert Schweitzer, que abandonou brilhante carreira médica na Europa, mais especificamente na Alemanha, para cuidar, de graça. por mais de 60 anos consecutivos, até a sua morte, de leprosos na remota localidade de Lambaréne, na África. Ganhou, por isso, justíssimo Prêmio Nobel da Paz, em 1952. Finalmente o terceiro foi Abraham Lincoln, ex-lenhador, autodidata, que superou a pobreza e as dificuldades para se instruir e chegou à Presidência dos Estados Unidos (foi o primeiro presidente Republicano) e que pôs fim a essa vergonha que foi a escravidão. Tudo o que se refira a essas três personalidades, pois, tem, para mim, aspecto muito especial, caráter um tanto sagrado.
Boa leitura.
O Editor.
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Não há o que acrescentar no seu texto.
ResponderExcluirApesar de só ter tido contato com essa
parte cruel da história do Brasil através
dos livros e documentos históricos, me sinto
envergonhada. Saber que seres humanos eram
vendidos como "coisas", ainda avilta.
Abração.
Agradabilíssima leitura este editorial. Fui andando por ele, como se ouvisse música, de tão bom que está.
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