sábado, 21 de maio de 2011







Gato escaldado (*)

(***) Por Ignácio de Loyola Brandão

Chico me ouvia:
- Fazia frio em Araçatuba, pode imaginar?
Ele não podia, nunca foi lá, cidade que fica em uma região quentíssima do Estado. Até eu fiquei surpreso com o clima.
- Oito da manhã, no aeroporto, havia uma brisa fresca, tive de colocar a malha. Acredita?
Chico não respondeu. É um gato rajado, cinza, pedigree de rua, um tanto burguês, só come ração. Pode deixar comida em cima da mesa, ele nem olha. Já a irmã dele, Marieta, negra como uma pantera, olhos verdes, tem suas preferências por kani (ou seria cani?) e alface. Eu tinha voltado da Virada Cultural do último fim de semana. Entrei no Teatro Municipal de Araçatuba, ao mesmo tempo que Tulipa Ruiz cantava na Unip. No hotel, dei com Fafá de Belém e aquele riso enorme que nos engole. O problema da Virada são as muitas opções. Escolher o que, ir onde? Ainda bem.
Antes, tinha estado em Poços de Caldas, na Sexta Flipoços, organizada pela Giselle Correia Ferreira, em tempo de testemunhar um momento emocionante acontecido com a escritora Laís de Castro. Ao entrar na sala para contar histórias, deu com 40 cegos sorridentes. Ela gelou. Como falar para cegos? Que imagens usar para definir o frio olhar de uma pessoa, reflexos na água ou no espelho e assim por diante? Passada a paralisia inicial, Laís foi magistral, simplesmente falou e os cegos entenderam, adoraram.
Em Araçatuba me vi diante de cem pessoas, foi um encontro quase íntimo com gente que tinha preferido a literatura em lugar do jogo final do campeonato paulista. Aquela conversa, envolvida pela paz do domingo, me lembrou o começo da noite em Araraquara, na minha infância, quando não havia tevê nem novelas e as pessoas colocavam as cadeiras na calçada e juntavam vizinhos, parentes, amigos e algum passante ocasional. Conversavam durante horas, servia-se um café com bolinhos de chuva. Falava-se de tudo, namoros, receitas, religião, política, separações (um escândalo!), novenas, custo de vida, limpeza das ruas, notícias ouvidas no rádio. Meu avô José Maria me explicou, certa noite: "Aqui você tem sempre um pedacinho da cidade e da nossa gente". Era a crônica do cotidiano, assim aprendi a olhar para as coisas do dia a dia como assuntos.
Mas agora, Chico e eu estamos sós. Minha mulher viajou, está fora há uma semana, minha filha dorme, voltou tarde da balada, estava com músicos preparando o show de lançamento de seu primeiro CD e a empregada ainda não chegou. A água está quase fervendo, ajeito o coador, conto as colheres de pó, são quatro e meia, para um café mais denso. Chico fica sobre a pia, cauteloso, desconfiado, sente a quentura do fogo. De manhã, ele me segue por toda parte. Abro a porta, ele cheira os jornais, aprova e me olha. Se vou para o computador, ele se instala sobre a impressora, toca leve com a pata cada folha que sai. Não sei se aprovando.
- Fique observando para aprender. Ferva a água, coloque o pó, depois derrame a água sobre o pó, lentamente.
Ele parece entender, olha para o fogo, a panela de água, a cafeteira. Segue os procedimentos, como dizem os médicos.
- Se quiser um café mais suave, coloque três colheres. Duas, se quiser um café de caboclo. Sabe o que é? É um café bem ralo, chamam água de batata, sei lá por quê.
O gato tem o olhar firme, fixo, sei que está me entendendo. Contempla as chamas azuis e não me responde. Penso na formiga com quem, anos atrás, tentei conversar e que se calou (**). Ele está imóvel, naquela pose de gravuras de gatos egípcios, que eram deuses. Não abre a boca, não mia, rosna, não emite opinião. Estará aprendendo a fazer café? Dou informações aleatórias.
- Tem quem prefira usar cafeteirinhas italianas, bonitas, design.
Para que falar em design com um gato? Ela parece mostrar desdém pela minha tarefa. Fazer café? Para quê? Para que beber uma água preta? Pensar que tem gente que toma sem açúcar. Outros não tomam à noite para dormir. Besteiras dos humanos. Chico é curioso. Quando faço o café, não se mete. Medo do fogo? Quando leio o jornal na cama, ele vem, deita-se sobre os cadernos, ou mordisca a página que estou lendo. É isto, o gato come notícias. Outro dia, arrancou uma foto da Camila Pitanga engoliu inteira. Não passou mal. Também, Camila Pitanga faz bem até aos gatos.
Mostro o resto da água fervente.
- Você tem de queimar bem o pó, com cuidado, por igual. Tem gente que não espera a água ferver. Cada um tem seu método. Quer ver? Chegue aqui perto, olhe para o coador, sinta o cheiro!
Chico faz que não com a cabeça. Recua e me diz:
- Eu? Sou bobo? Gato escaldado tem medo da água quente!

(*) Crônica publicada em “O Estado de São Paulo”, em 20 de maio de 2011.
(**) Falei mesmo com formiga. A história está no conto O Mistério da Formiga Matutina, no meu livro O Homem Que Odiava a Segunda-Feira.

(***) Jornalista e escritor

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