domingo, 22 de maio de 2011









O bairro e a ditadura

* Por Raul Fitipaldi.


Meus filhos tinham 4, 5 anos. A noite era bela, luminosa. Havia que apagar as luzes, esse era o acordo. Montevidéu às escuras. Era a brincadeira do bicho-papão; íamos pra rua ou não? Com as crianças, com as panelas, íamos? Fomos. Pela Avenida Rivera, esquina Simón Bolívar os milicos passavam em caminhonetas tenebrosas, verde-escuro. Um silêncio raro antecipava uma música solidária, o barulho do protesto, parados no meio-fio e batendo tudo o que era lata e metal. As crianças do bairro estavam lá, aprendendo, ouvindo, vendo e escrevendo a história.
As horas anteriores foram expectantes. Vai acontecer ou não? Será que todos se animam. O bairro tá raro, tenso, como assustado, mas, cúmplice. A luz dos olhos das meninas mais velhas dizia tudo. Vestidas como para uma festa, como para dançar e cantar murga e candombe na rua. Outras tinham olhos de rock e de candombe-beat. Os rapazes estavam sérios, clandestinos, clássicos, jeans, alpargatas, chimarrão de mano-em-mano. Eu olhava para os olhos da Ana, estava segura, confiante, algo radiante me pareceu. Não sei como eu estava, talvez, olhando os filhos, como se fosse lindo o passeio até a esquina para divertir-se. Mas, estava a responsabilidade histórica, um momento inesquecível, a memória e o protagonismo popular. Povo ao fim, povo, somos povo, somos mais humanos na rua, melhor gente na rua. A rua do bairro era a avenida até a liberdade. Os milicos não podiam sujar o bairro.
A filha dançava candombe com as patinhas magras costumadas ao tá-ta-tá-chas-chas! O menino, menor, não entendia muito, mas se agradava do mistério, da falta de luz, da lua maciça no meio do asfalto. As panelas começaram a se coçar, uma contra outra. As conchas da sopa bateram de leve chamando à liberdade, pin-pan-pin-pan. O bairro estava unido, jamais seria vencido. Os milicos passavam incrédulos, um, dois, um, dois, três, quatro, dez, trinta, cem milicos. Muitos. Nós éramos mais, as estrelas eram mais. Vai-se acabar, vai-se acabar a ditadura militar. O bairro começou a brilhar, a luz saía dos corpos, as mãos eram pombas brancas raiando a noite, o cochicho se fez canto, o canto grito, o grito pranto de felicidade, estava lá o bairro de Pocitos gritando, tocando, dançando: Orientais a Pátria ou o Túmulo, Liberdade ou com Glória Morrer, o Povo Unido...
Passaram-se décadas, a filha anda atrás dos desaparecidos do Brasil e da América Latina em um Núcleo da UFSC. Os desaparecidos entristecem a Colômbia, Honduras, Peru, México, e todos os bairros da Pátria Grande. A história, bairro a bairro, nos obriga a não esquecer nem perdoar. As noites de Pocitos voltam à memória, e o alerta para que as ditaduras não voltem... também.

• Jornalista

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