Golpe em marcha para tirar Ana de Hollanda do MinC
* Por Mauro Dias
Aplaudi a indicação de Ana de Hollanda para o Ministério da Cultura da posição independente de quem não votou na Dilma Rousseff. Aplaudi por muitos motivos, mas dois deles já me seriam suficientes. Primeiro, Ana de Hollanda vinha de um não questionado período à frente da Funarte, o que lhe conferia – confere – experiência administrativa e comprova capacidade na lida com as complicações do tráfego burocrático. Segundo, e mais importante, Ana de Hollanda é uma artista independente. Fez a carreira de cantora a contrapelo do mercado, gravou o que quis gravar, da forma como quis gravar, tendo como norte o primado estético, como regra a integridade artística. Há quem goste e quem não goste do trabalho da cantora Ana de Hollanda. Não há quem lhe negue honestidade e coragem na construção da carreira.
O fato é inédito: um artista, se não de sucesso, ao menos de prestígio, sem ligação com a indústria (ou a academia) chega ao comando do MinC. Bolas, todos sabemos muito bem que existem duas músicas brasileiras (e vou falar só de música, campo que conheço bem e sobre o qual escrevo há mais de quarenta anos). Uma delas, uma dessas músicas brasileiras, é a criada pelo mercado, pela indústria, pelas três multinacionais que mandam no mercado fonográfico, na difusão televisiva e radiofônica e no trânsito virtual de informações. Essa música é, na quase totalidade (totalidade, de fato; há uma ou outra exceções que confirmam a regra), muito ruim. Não representa xongas para a cultura. Tem significado para a megaindústria do entretenimento e para as bolsas de valores. Naturalmente, a criação que circula nessa esfera tem o lucro como objetivo. Nada contra o lucro. É só questão de pôr as coisas no lugar.
A outra música brasileira é a que o sujeito faz de acordo com sua sensibilidade, suas convicções artísticas, seu desejo de traduzir o mundo, à sua maneira, sem outros ditames que não os de foro íntimo. Esse criador é o independente. Se faz um disco, ele é lançado por uma gravadora pequena – ou o artista cria seu próprio selo para lançar o disco. Dessa forma, a obra submete-se ao mínimo possível de interferência externa. O resultado pode ser formidável ou pavoroso. Não importa, é autêntico. E a verdade é: nem toda música independente é boa, mas praticamente toda música boa em circulação é independente. Ou, posto de outra forma: se ser independente não faz de ninguém um bom artista, ser parte da indústria, como regra, caracteriza um artista que se importa mais com o lucro do que com a arte.
Essa é uma discussão antiga, que embute um monte de “no entanto”, “não obstante”, “por outro lado” – e joga com questões não artísticas – necessidades particulares, questões de sobrevivência, vaidade, claro, mas também coerência, caráter e outras qualidades (negativas ou positivas) abstratas. Renderia páginas e páginas de exposição e outras tantas de discussão, mas nada muda a realidade: a boa canção brasileira está na produção independente, que, sim, também é um mercado, mas de proporções menores do que aquele capitaneado pela grande indústria e, por uma tradição há muito estabelecida, mais preocupado com a boa qualidade – a autenticidade - de seu produto. A independência permite que o artista ouse, seja diferente, corra riscos, defenda estéticas, crie estéticas, marque presença, anuncie sotaques, explicite estranhamentos, estabeleça parâmetros, diversifique parâmetros, introduza ou suprima elementos, expanda experiências, enfim, manifeste-se.
Então, quando alguém vinda dessa extração assume o Ministério da Cultura, essa é uma boa notícia. Ana de Hollanda vem (ou melhor, é) do mercado independente, conhece as dificuldades de se fazer cultura sem o amparo dos mecanismos da grande indústria, sem garantia nenhuma de chegar ao topo da parada de sucessos, mas com garantia total de fazer o que lhe dá na telha e lhe parece bom (muitas vezes pagando do próprio bolso para que a criação se transforme em produto, em disco). Eventualmente entra um trocadinho, suado, sofrido, pequeno, mas estava previsto. E é assim que a cultura se move, assim ela anda para a frente.
Uma cantora com experiência nessa área pode fazer muito pela música brasileira – mais uma vez, estou falando de música porque é o que conheço melhor. Com base em sua experiência no mercado independente, com seu conhecimento de como funcionam os mecanismos que freiam a divulgação da obra que não pertence ao grande mercado, pode dar contribuição formidável para nosso cancioneiro. Pelo vasto conhecimento da cultura popular tradicional, pela vivência junto aos criadores alternativos, pelas batalhas que enfrentou para levar seus discos às lojas, seus espetáculos aos palcos, conhece como só quem viveu a questão as dificuldades porque passa a grande maioria dos autores, intérpretes, músicos. Junte-se isso à experiência administrativa e podemos ter um Ministério da Cultura que faça jus à cultura que representa.
Agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para defenestrá-la.
A nomeação de Ana de Hollanda foi uma porrada na cara da corrente hegemônica do MinC conforme a estrutura deixada por Gilberto Gil, um grande artista que fez carreira na indústria (os tempos eram outros, naturalmente) e que tem cabeça de mercado, até porque as contingências de sua trajetória são muito peculiares (outro tópico que renderia páginas e páginas de discussão). E foi uma porrada porque Ana de Hollanda mandou retirar da página inicial do sítio do MinC o link para licenças do Creative Commmons, um mecanismo que permite que determinado autor abra mão, sob certas circunstâncias, de seus direitos financeiros resultantes da circulação da obra.
A ministra argumentou desde o início que não era necessária aquela licença específica – que se apresenta como sem fins lucrativos -, uma vez que a legislação ordinária permite que um autor abra mão de seus direitos – etc. O MinC considera o link propaganda de um produto multinacional que funciona como “barateador de custos” para a “livre circulação da informação” – leia-se, obra de arte (música, textos e mais). Não argumentou, muito diplomaticamente, que o tal mecanismo é mantido por empresas de software - o Google, por exemplo, é uma empresa de software livre, usado no mundo inteiro, gratuito. Gratuito? É o maior empreendimento comercial da era da informática, maior do que a Microsoft. Ganha em publicidade. Ganha fazendo circular (“gratuitamente”) conteúdo ao qual vem agregado a publicidade. Ganha monitorando virtualmente nosso gosto, nossas preferências, nossas atividades comuns e elegendo, com base nas informações que acumula, os produtos que devem ser de nosso interesse; cobra do anunciante, atinge um público cuidadosamente escolhido etc., etc., etc.
Mas na hora de distribuir conteúdo – vamos falar de música, especificamente -, o Google (e qualquer outro provedor) precisa pagar direito autoral, de acordo com legislações vigentes no mundo inteiro. Isso representa custo alto, dado o volume de informação em movimento. E aí entra o “facilitador” Creative Commons, um formulário pronto, que basta preencher e – eureca! – o autor abre mão de seu direito em troca da garantia (na verdade, nenhuma) de estímulo para divulgação da obra, uma vez que não há custo para quem a vai divulgar – e o verbo “divulgar” é usado eufemisticamente no lugar do que de fato é posto em prática: negócio. O conteúdo é negociado, não é “divulgado”. Ele é trocado pelas informações sobre seus gostos e preferências para orientar a publicidade que você recebe quando abre determinada página.
Você dirá: mas é assim que funciona o mundo. Verdade. Só que, no mundo dos negócios, todos os envolvidos ganham alguma coisa – uns poucos ganham muito, uma parte ganha alguma coisa, a maioria ganha bem pouco, mas todos ganham. No caso da “flexibilização” do direito autoral todos ganham – menos o autor. Só que, sem o autor, não há obra, e sem obra essa estrutura toda não tem razão de ser. Então porque apenas o autor deve abrir mão de seu lucro, se é ele que faz rodar a engrenagem?
Claro que ninguém é obrigado a usar a licença do Creative Commmons. Mas o autor vai pensar, inevitavelmente, que se ele não abrir mão de seus direitos e os outros abrirem mão, a obra dele vai ser preterida, porque tem custo, enquanto a dos outros não tem. Então, porque precisa mostrar a obra, ele acaba abrindo mão de seu direito de autor. É só isso. Foi só por isso que a licença foi retirada da página do MinC. Porque ela induzia o autor a abrir mão de seu lucro – aumentando o lucro de quem veicula sua obra. Uma espécie de Ardil 22, mais cruel – muito mais cruel – do que o Ardil 22 original, vocês lembram? O livro “Ardil 22”, do norte-americano Joseph Heller (filmado por Mike Nichols) é passado numa guerra – da Coreia, acho. Os pilotos têm um número determinado de bombardeios para realizar, e esse número sempre aumenta. Então, o sujeito resolve pedir para ser dispensado, porque não aguenta mais a barbaridade que está cometendo. Vai ao médico, que lhe pergunta: “Você está maluco”? O cara responde que não. “Então não posso lhe dar licença. Você não está ferido. Só poderia dispensá-lo se você estivesse ferido ou louco. Mas se você estivesse louco não pediria para parar de voar. Se você pede para parar de bombardear, é porque você está são. E se você está são, não posso dispensá-lo”.
Agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para defenestrá-la.
Ela feriu a lógica do Ardil 22. Como não pode ser punida por tirar uma peça publicitária da página do MinC, o cerco vem de outros lados. Escândalo no Ecad? Culpa da ministra. Os órfãos da estrutura montada por Gilberto Gil & Juca Ferreira no governo Lula, que davam por certo assumir o MinC, querem que Ana de Hollanda façam intervenção no Ecad – mas intervenção numa entidade de direito privado, que história é essa? O Ecad, que funciona mal, mesmo, sem dúvida, pertence aos autores. Foi criado, nos anos 60, como órgão fiscalizador da arrecadação de direitos autorais. Antes do Ecad, cada sociedade de direitos autorais recolhia o dinheiro de seus associados e o distribuía de volta como bem entendesse, sem ter de prestar contas a ninguém. O papel do Ecad é fiscalizar, de forma centralizada, a arrecadação e distribuição, punindo quem cometa impropriedades. O próprio Ecad, no entanto, comete (muitos) erros. Pois que se conserte o Ecad. Que os autores (e intérpretes e arranjadores e todos os envolvidos) se unam para fiscalizar o Ecad. Não que o governo intervenha para acabar com o Ecad. Ou, pior do que isso, como anda sendo defendido: que o governo se torne gestor do dinheiro do direito autoral.
Porque essa reivindicação, vale lembrar, é antiga. É do interesse dos donos de emissoras de rádio e televisão, concessões públicas que em grande parte acaba nas mãos de caciques políticos – que são contra a cobrança do direito autoral, obviamente. Os políticos vivem pedindo intervenção no Ecad. Agora, por inocência ou desconhecimento, ou malícia, ou interesses ocultos, um monte de gente – intelectuais em bons postos públicos, criadores que frequentam gabinetes, ambiciosos que se sentiram lesados com a mudança da política do MinC – estão fazendo coro com os políticos que não querem pagar o direito autoral. E a ministra é contra? Derrube-se a ministra!
Pois agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para defenestrá-la.
Devo dizer que não tenho procuração para falar em nome de Ana de Hollanda. Nem estou dizendo que Gilberto Gil & Juca Ferreira tenham agido de má fé. Apenas acho que eles estavam equivocados e que Ana de Hollanda está certa. Ou no caminho certo. E tenho certeza de uma coisa: se o golpe que está sendo armado der certo, estaremos dando um passo para trás, um imenso, infinito passo atrás, em termos de democracia, de gerenciamento independente, de visão criativa apartada (embora não ignorante dele, atenção) do mundo do mundo do negócio. Estou com medo.
* Por Mauro Dias
Aplaudi a indicação de Ana de Hollanda para o Ministério da Cultura da posição independente de quem não votou na Dilma Rousseff. Aplaudi por muitos motivos, mas dois deles já me seriam suficientes. Primeiro, Ana de Hollanda vinha de um não questionado período à frente da Funarte, o que lhe conferia – confere – experiência administrativa e comprova capacidade na lida com as complicações do tráfego burocrático. Segundo, e mais importante, Ana de Hollanda é uma artista independente. Fez a carreira de cantora a contrapelo do mercado, gravou o que quis gravar, da forma como quis gravar, tendo como norte o primado estético, como regra a integridade artística. Há quem goste e quem não goste do trabalho da cantora Ana de Hollanda. Não há quem lhe negue honestidade e coragem na construção da carreira.
O fato é inédito: um artista, se não de sucesso, ao menos de prestígio, sem ligação com a indústria (ou a academia) chega ao comando do MinC. Bolas, todos sabemos muito bem que existem duas músicas brasileiras (e vou falar só de música, campo que conheço bem e sobre o qual escrevo há mais de quarenta anos). Uma delas, uma dessas músicas brasileiras, é a criada pelo mercado, pela indústria, pelas três multinacionais que mandam no mercado fonográfico, na difusão televisiva e radiofônica e no trânsito virtual de informações. Essa música é, na quase totalidade (totalidade, de fato; há uma ou outra exceções que confirmam a regra), muito ruim. Não representa xongas para a cultura. Tem significado para a megaindústria do entretenimento e para as bolsas de valores. Naturalmente, a criação que circula nessa esfera tem o lucro como objetivo. Nada contra o lucro. É só questão de pôr as coisas no lugar.
A outra música brasileira é a que o sujeito faz de acordo com sua sensibilidade, suas convicções artísticas, seu desejo de traduzir o mundo, à sua maneira, sem outros ditames que não os de foro íntimo. Esse criador é o independente. Se faz um disco, ele é lançado por uma gravadora pequena – ou o artista cria seu próprio selo para lançar o disco. Dessa forma, a obra submete-se ao mínimo possível de interferência externa. O resultado pode ser formidável ou pavoroso. Não importa, é autêntico. E a verdade é: nem toda música independente é boa, mas praticamente toda música boa em circulação é independente. Ou, posto de outra forma: se ser independente não faz de ninguém um bom artista, ser parte da indústria, como regra, caracteriza um artista que se importa mais com o lucro do que com a arte.
Essa é uma discussão antiga, que embute um monte de “no entanto”, “não obstante”, “por outro lado” – e joga com questões não artísticas – necessidades particulares, questões de sobrevivência, vaidade, claro, mas também coerência, caráter e outras qualidades (negativas ou positivas) abstratas. Renderia páginas e páginas de exposição e outras tantas de discussão, mas nada muda a realidade: a boa canção brasileira está na produção independente, que, sim, também é um mercado, mas de proporções menores do que aquele capitaneado pela grande indústria e, por uma tradição há muito estabelecida, mais preocupado com a boa qualidade – a autenticidade - de seu produto. A independência permite que o artista ouse, seja diferente, corra riscos, defenda estéticas, crie estéticas, marque presença, anuncie sotaques, explicite estranhamentos, estabeleça parâmetros, diversifique parâmetros, introduza ou suprima elementos, expanda experiências, enfim, manifeste-se.
Então, quando alguém vinda dessa extração assume o Ministério da Cultura, essa é uma boa notícia. Ana de Hollanda vem (ou melhor, é) do mercado independente, conhece as dificuldades de se fazer cultura sem o amparo dos mecanismos da grande indústria, sem garantia nenhuma de chegar ao topo da parada de sucessos, mas com garantia total de fazer o que lhe dá na telha e lhe parece bom (muitas vezes pagando do próprio bolso para que a criação se transforme em produto, em disco). Eventualmente entra um trocadinho, suado, sofrido, pequeno, mas estava previsto. E é assim que a cultura se move, assim ela anda para a frente.
Uma cantora com experiência nessa área pode fazer muito pela música brasileira – mais uma vez, estou falando de música porque é o que conheço melhor. Com base em sua experiência no mercado independente, com seu conhecimento de como funcionam os mecanismos que freiam a divulgação da obra que não pertence ao grande mercado, pode dar contribuição formidável para nosso cancioneiro. Pelo vasto conhecimento da cultura popular tradicional, pela vivência junto aos criadores alternativos, pelas batalhas que enfrentou para levar seus discos às lojas, seus espetáculos aos palcos, conhece como só quem viveu a questão as dificuldades porque passa a grande maioria dos autores, intérpretes, músicos. Junte-se isso à experiência administrativa e podemos ter um Ministério da Cultura que faça jus à cultura que representa.
Agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para defenestrá-la.
A nomeação de Ana de Hollanda foi uma porrada na cara da corrente hegemônica do MinC conforme a estrutura deixada por Gilberto Gil, um grande artista que fez carreira na indústria (os tempos eram outros, naturalmente) e que tem cabeça de mercado, até porque as contingências de sua trajetória são muito peculiares (outro tópico que renderia páginas e páginas de discussão). E foi uma porrada porque Ana de Hollanda mandou retirar da página inicial do sítio do MinC o link para licenças do Creative Commmons, um mecanismo que permite que determinado autor abra mão, sob certas circunstâncias, de seus direitos financeiros resultantes da circulação da obra.
A ministra argumentou desde o início que não era necessária aquela licença específica – que se apresenta como sem fins lucrativos -, uma vez que a legislação ordinária permite que um autor abra mão de seus direitos – etc. O MinC considera o link propaganda de um produto multinacional que funciona como “barateador de custos” para a “livre circulação da informação” – leia-se, obra de arte (música, textos e mais). Não argumentou, muito diplomaticamente, que o tal mecanismo é mantido por empresas de software - o Google, por exemplo, é uma empresa de software livre, usado no mundo inteiro, gratuito. Gratuito? É o maior empreendimento comercial da era da informática, maior do que a Microsoft. Ganha em publicidade. Ganha fazendo circular (“gratuitamente”) conteúdo ao qual vem agregado a publicidade. Ganha monitorando virtualmente nosso gosto, nossas preferências, nossas atividades comuns e elegendo, com base nas informações que acumula, os produtos que devem ser de nosso interesse; cobra do anunciante, atinge um público cuidadosamente escolhido etc., etc., etc.
Mas na hora de distribuir conteúdo – vamos falar de música, especificamente -, o Google (e qualquer outro provedor) precisa pagar direito autoral, de acordo com legislações vigentes no mundo inteiro. Isso representa custo alto, dado o volume de informação em movimento. E aí entra o “facilitador” Creative Commons, um formulário pronto, que basta preencher e – eureca! – o autor abre mão de seu direito em troca da garantia (na verdade, nenhuma) de estímulo para divulgação da obra, uma vez que não há custo para quem a vai divulgar – e o verbo “divulgar” é usado eufemisticamente no lugar do que de fato é posto em prática: negócio. O conteúdo é negociado, não é “divulgado”. Ele é trocado pelas informações sobre seus gostos e preferências para orientar a publicidade que você recebe quando abre determinada página.
Você dirá: mas é assim que funciona o mundo. Verdade. Só que, no mundo dos negócios, todos os envolvidos ganham alguma coisa – uns poucos ganham muito, uma parte ganha alguma coisa, a maioria ganha bem pouco, mas todos ganham. No caso da “flexibilização” do direito autoral todos ganham – menos o autor. Só que, sem o autor, não há obra, e sem obra essa estrutura toda não tem razão de ser. Então porque apenas o autor deve abrir mão de seu lucro, se é ele que faz rodar a engrenagem?
Claro que ninguém é obrigado a usar a licença do Creative Commmons. Mas o autor vai pensar, inevitavelmente, que se ele não abrir mão de seus direitos e os outros abrirem mão, a obra dele vai ser preterida, porque tem custo, enquanto a dos outros não tem. Então, porque precisa mostrar a obra, ele acaba abrindo mão de seu direito de autor. É só isso. Foi só por isso que a licença foi retirada da página do MinC. Porque ela induzia o autor a abrir mão de seu lucro – aumentando o lucro de quem veicula sua obra. Uma espécie de Ardil 22, mais cruel – muito mais cruel – do que o Ardil 22 original, vocês lembram? O livro “Ardil 22”, do norte-americano Joseph Heller (filmado por Mike Nichols) é passado numa guerra – da Coreia, acho. Os pilotos têm um número determinado de bombardeios para realizar, e esse número sempre aumenta. Então, o sujeito resolve pedir para ser dispensado, porque não aguenta mais a barbaridade que está cometendo. Vai ao médico, que lhe pergunta: “Você está maluco”? O cara responde que não. “Então não posso lhe dar licença. Você não está ferido. Só poderia dispensá-lo se você estivesse ferido ou louco. Mas se você estivesse louco não pediria para parar de voar. Se você pede para parar de bombardear, é porque você está são. E se você está são, não posso dispensá-lo”.
Agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para defenestrá-la.
Ela feriu a lógica do Ardil 22. Como não pode ser punida por tirar uma peça publicitária da página do MinC, o cerco vem de outros lados. Escândalo no Ecad? Culpa da ministra. Os órfãos da estrutura montada por Gilberto Gil & Juca Ferreira no governo Lula, que davam por certo assumir o MinC, querem que Ana de Hollanda façam intervenção no Ecad – mas intervenção numa entidade de direito privado, que história é essa? O Ecad, que funciona mal, mesmo, sem dúvida, pertence aos autores. Foi criado, nos anos 60, como órgão fiscalizador da arrecadação de direitos autorais. Antes do Ecad, cada sociedade de direitos autorais recolhia o dinheiro de seus associados e o distribuía de volta como bem entendesse, sem ter de prestar contas a ninguém. O papel do Ecad é fiscalizar, de forma centralizada, a arrecadação e distribuição, punindo quem cometa impropriedades. O próprio Ecad, no entanto, comete (muitos) erros. Pois que se conserte o Ecad. Que os autores (e intérpretes e arranjadores e todos os envolvidos) se unam para fiscalizar o Ecad. Não que o governo intervenha para acabar com o Ecad. Ou, pior do que isso, como anda sendo defendido: que o governo se torne gestor do dinheiro do direito autoral.
Porque essa reivindicação, vale lembrar, é antiga. É do interesse dos donos de emissoras de rádio e televisão, concessões públicas que em grande parte acaba nas mãos de caciques políticos – que são contra a cobrança do direito autoral, obviamente. Os políticos vivem pedindo intervenção no Ecad. Agora, por inocência ou desconhecimento, ou malícia, ou interesses ocultos, um monte de gente – intelectuais em bons postos públicos, criadores que frequentam gabinetes, ambiciosos que se sentiram lesados com a mudança da política do MinC – estão fazendo coro com os políticos que não querem pagar o direito autoral. E a ministra é contra? Derrube-se a ministra!
Pois agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para defenestrá-la.
Devo dizer que não tenho procuração para falar em nome de Ana de Hollanda. Nem estou dizendo que Gilberto Gil & Juca Ferreira tenham agido de má fé. Apenas acho que eles estavam equivocados e que Ana de Hollanda está certa. Ou no caminho certo. E tenho certeza de uma coisa: se o golpe que está sendo armado der certo, estaremos dando um passo para trás, um imenso, infinito passo atrás, em termos de democracia, de gerenciamento independente, de visão criativa apartada (embora não ignorante dele, atenção) do mundo do mundo do negócio. Estou com medo.
*Mauro Dias é jornalista
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