quinta-feira, 26 de maio de 2011







Paixão incondicional

* Por Gustavo do Carmo

Teodoro tinha uma paixão incondicional pela Tijuca. Morava na Rua Uruguai, mas trabalhava no centro da cidade. Passava oito horas enfurnado dentro do escritório no edifício da Standard and Oil, louco para voltar para a Tijuca, sua casa.

Tudo da Tijuca era bom. Tudo que vinha dos outros bairros era ruim. Seus colegas odiavam quando ele falava amores do seu bairro. O achavam até antipático e inconveniente por causa disso. Mas era uma boa pessoa. E um excelente contador. Ainda assim, conquistou alguns desafetos por causa do seu amor doentio, segundo eles, pelo bairro. Diziam que ele era quase simpático, quase rico, tinha um carro quase do ano, era quase morador da zona sul. Um morador de Bonsucesso tinha ódio da Tijuca por causa de Teodoro.

Os amigos até aturavam. Quando Teodoro os convidava para almoçar com ele, impunham, de brincadeira, uma única condição:

— Só se você não falar da Tijuca.

— Está bem, eu não falo.

E quem disse que Teodoro cumpria a promessa? Saía pelo Centro e dizia que as calçadas da Tijuca eram mais cuidadas, as ruas da Tijuca eram mais limpas, o restaurante onde eles almoçavam não chegava aos pés dos restaurantes do seu bairro preferido. O Café Palheta da Tijuca era melhor que o do Centro. O Metro da Tijuca era melhor que o da Cinelândia...

O cinema era outra paixão de Teodoro. Durante a semana, chegava do trabalho, tomava banho, jantava e caminhava até a Praça Saenz Peña para curtir uma sessão noturna no Metro, no Olinda, América ou no Palácio. Do Eskie e do Britânica ele não gostava. Depois voltava para casa. Não chegava a ser um programa sagrado. Em alguns dias chegava cansado, fazia serão, levava a mãe para fazer compras ou, contrariado, ia à festa de algum amigo ou parente na zona sul, onde não deixava de comparar com a Tijuca. Enxergava os defeitos até mesmo no escuro da noite.

Os finais de semana, sim, eram sagrados. Aos sábados, a sessão era dupla. Assistia a dois filmes no mesmo cinema ou o primeiro em um e o segundo em outro, dependendo do filme e do horário. Encerrava o passeio, já na madrugada, lanchando no Café Palheta. Comia sempre pizza com refrigerante e milk-shake de sobremesa. Aos domingos, só assistia a uma sessão porque precisava chegar em casa ainda à noite, para acordar cedo e trabalhar no dia seguinte, recomeçando a rotina de declarações de amor à Tijuca para os seus colegas que o gozavam pelas costas.

Teodoro era sócio e torcedor do America Football Club, onde curtia as manhãs de domingo de verão, claro, depois da missa na Igreja de Santo Afonso, onde sempre ia com a mãe. Quando tinha feriado na segunda, ia ao Maracanã aos domingos à tarde ver o jogo do seu diabo e deixava para cumprir o ritual do cinema no dia seguinte. Mas o Maracanã não era programa obrigatório. O cinema vinha em sempre em primeiro lugar.

Esse programa Teodoro fazia desde os dez anos. Primeiro com os pais. Depois com Lucas, um amigo de infância e adolescência que se mudou para São Paulo quando entrou para a faculdade. E finalmente sozinho. Dinheiro nunca lhe faltou para tanto cinema e lanches. Seu pai era gerente do Banco do Brasil e ganhava muito bem. Tinha até condições de sair da Tijuca e ir para a zona sul, mas Teodoro não aceitava sequer pensar em sair do bairro onde nasceu e criou raízes apaixonadas.

Dispensou o dinheiro do pai quando se formou e começou a trabalhar em contabilidade. Também conquistou um bom salário. Independente, passou a incluir os dias úteis da semana em sua agenda cinematográfica.

Durante esse religioso programa de lazer, Teodoro conheceu Nazareth, uma bela moça, bondosa e tímida que morava na Antônio Basílio e freqüentava o cinema com algumas amigas. Foi amor à primeira vista.

Teodoro ganhou a companhia de Nazareth em seu programa de lazer obrigatório. Apenas nos finais de semana. À noite, a menina não podia sair porque os pais não deixavam o namoro interferir nos estudos no Instituto de Educação, onde ainda cursava o Normal para ser professora.

O namoro já estava firme e o casal já conhecia os respectivos sogros quando, após mais uma sessão de cinema e lanche no Palheta, Teodoro convidou Nazareth para se sentarem em um banco na Praça Saens Pena. O rapaz decidiu pedir a mão da namorada em casamento. Deu-lhe um anel de compromisso e prometeu anunciar o noivado na semana seguinte àquele dia com uma grande reunião familiar. Casariam-se em seis meses. Além de aceitar o noivado, Nazareth retribuiu com uma ótima notícia: estava grávida.

Teodoro ficou nas nuvens de tão feliz. Parecia flutuar pela praça e pela Rua Conde de Bonfim. A emoção de ser pai de mais um tijucano era tanta que ele nem sentiu o lotação o jogando longe.

Só acordou quarenta anos depois. Parecia se ver no espelho quinze anos mais velho. Mas o filho foi a primeira pessoa que viu quando voltou do coma. Deoclécio era o único que acreditava que o pai biológico voltaria do coma. Horas depois viu Nazareth. Só a reconheceu por causa dos seus olhos verdes e lábios finos. Já tinha cabelos pintados para esconder os seus 58 anos.

Teodoro se recuperou. Ainda não se esqueceu da Tijuca. Quando teve alta, pediu para dar um passeio. Queria ir ao cinema. Falava torto e não andava. Deoclécio e Nazareth tentavam demovê-lo da idéia. Tiveram medo de assustá-lo ao dizer que os cinemas que ele tanto freqüentava não existiam mais.

Aos poucos foram contando que Nazareth casou-se e enviuvou-se de Reginaldo, que criou e registrou Deoclécio como filho, que este já era casado e tinha dois filhos pequenos, que os pais de Teodoro, filho único, já haviam falecido – o pai, no ano seguinte ao atropelamento, suicidou-se, e a mãe durou mais cinco anos com depressão. Os ex-futuros sogros também. Nazareth teve até outro filho, que mora no exterior. Com as notícias familiares Teodoro não se abalou. Pediu para ir aos cinemas e lanchar no Palheta. Mesmo morando em Copacabana, lugar que Teodoro ainda odiava, Nazareth e Deoclécio levaram o ex-noivo e pai para a Tijuca.

O bairro tão querido estava decadente. A Saens Pena totalmente modificada. As ruas imundas. Gente mal vestida e pedindo esmolas na rua. Vendedores ambulantes como no centro da cidade, segundo ele. Encontrou o Cine Carioca. Mas já não era um cinema e sim uma igreja evangélica. No lugar do América viu uma farmácia. Não encontrou o Olinda, que já tinha sido demolido cinco anos depois do acidente que sofreu. Em vez do Metro viu somente uma loja de departamentos. Aliviou-se quando viu que ainda existia o Palheta, reduzido a um pequeno balcão. O salão estava dominado por outra farmácia.

Com a sua cadeira de rodas motorizada, Teodoro adiantou-se do filho e acelerou em direção à rua. Desta vez, não se sentia nas nuvens, mas sim no inferno quando foi jogado longe pela segunda vez por um ônibus, que fulminou a sua paixão incondicional pela Tijuca e pelo cinema.


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores

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