segunda-feira, 30 de maio de 2011







Ah, o maldito cálice da insanidade

* Por Eduardo Murta

Os tipos da máquina de escrever manual, tinta preta, remetem para logo ali, as primeiras franjas dos anos 1960. E vão se sobrepondo em velocidade de contentamento ao longo do papel amarelado. Tricotam desfecho feliz. Mal sabe Amador o enredo de tragédia que se erguerá na esteira daqueles textos. Ponto final, revisão minuciosa, e os originais seguiriam ao editor que lhe prometera uma chance.
Viriam seis noites sem dormir – o relógio desnudando todos seus segredos – e o chamado às pressas ao posto telefônico. Era fim de tarde, e o acharam ajeitando os filós antipernilongos. Largou tudo por armar e chegou esbaforido ao bocal do aparelho. Pronunciou um alô tuberculoso, que na outra ponta julgavam falar com um cadáver.
A cada frase, as pernas lhe bambeavam. Chorava, lembrando um menino, porque iriam publicar seu romance. Aos 40 anos, contabilizava ao menos 35 lustrando o sonho de um dia poder falar ao mundo pelas letras. Produzira 243 páginas datilografadas, em 12 capítulos. Um crítico talvez enxergasse temperos de Kafka em seu estilo.
Foi com zelo de quem põe um filho para adormecer que organizou o volume no envelope mostarda e se dirigiu ao ponto da estrada em que, três em três dias, o ônibus se anunciava no poeirão. Subiu, deu recomendação expressa, repetiu, reiterou, sublinhou. Que fosse entregue ao agente dos correios na rodoviária da capital. Uma semana e meia de angústia, e brindou ao recebimento da encomenda.
Logo pôde fazer planos. O dezembro dali a quatro meses, e teria livro com nome, assinatura de autor e capa vitrines afora. Começou a gastar por conta, ao sinal de que o primeiro cheque aportaria em breve. Bebidas, mulheres, a sorte no carteado, um anel a Jurema, um colar a Isaura. Foi que, no novembro, a comunicação, súbito, se partiu.
Sobreveio um silêncio longo, asfixiante. Roera tanto as unhas que o sangue se avizinhava. Ancorou-se no posto telefônico e só saiu horas depois, completada a ligação. Em meio à chuva de ruídos, o choque: o editor adoecera, causa grave. Mandasse rezar missa, aviar promessa. Duas semanas mais, e viria o pior. Morrera.
Rumou à metrópole, desembestado. Contava os minutos. Não pensava mais em livro, mas em resgatar as 243 páginas em papel encardido, de cujos originais não fizera cópias. Burro, burro, burro!!! Se punha em descompasso à simples hipótese de terem se extraviado com o espólio do morto. A secretária gaguejou, relutou, fez rodeios, e sob uma atmosfera que em já se punha doente terminou por contar a Amador o resumo trágico.
Como pedira em testamento, o sujeito fora sepultado com todo o seu acervo literário – de Machado de Assis aos inéditos. Ao assombro da revelação, baixou no cemitério. Enxada e pá operando, ele era uma fração mórbida àquele contraluz de fim de tarde. Os jornais da época contam mais sobre o episódio. Do homem tresloucado, preso como profanador de túmulos, uivando ao delegado, sem ser compreendido, que ali estava enterrada sua história.
E, do manicômio – lá se vão sete anos –, descrevem que ainda hoje rabisca as paredes, jurando que reescreve um romance. Passou das 200 páginas. E morrerá de novo, quando revelarem que o pavilhão tem data próxima para ser demolido. Desconjuntando palavra por palavra. Pondo abaixo todos os sentidos. E definitivamente o condenando a se afogar no maldito cálice da insanidade.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

2 comentários:

  1. Que agonia e ao mesmo tempo
    que tristeza por ter tido ele
    seus sonhos despedaçados.
    Abraços

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  2. Eduardo, que situação longa, interminável e aflitiva. Fiquei sem fôlego no decorrer da tragédia. Definitivamente, "uma coisa de louco".

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