Rito de passagem
* Por Nei Duclós
Talvez não tenha sido o AI-5, decretado no ano anterior, mas o horror às aulas de taquigrafia o motivo principal para eu abandonar as aulas do Curso de Jornalismo da Ufrgs. O tranco da nossa professora alemã assombrava aquela matéria que substituía os garranchos por hieróglifos, o que nos transformava em escravos egípcios ou no máximo em secretárias da ONU. Já era o segundo ano que eu enfrentava o rigor de uma prática cara à segunda Guerra Mundial. Tinha certeza de que seria novamente reprovado por não saber que dois pontinhos ao lado do arabesco significavam “segundo o senhor presidente da República”.
Por isso, escudado nas mais justas desculpas, como o fato (real) de que os melhores professores tinham sido expulsos e restávamos sós depois da grande dispersão e derrota, aceitei o convite absurdo de um grupo de desocupados como eu. Partimos numa viagem suicida cruzando o pampa, em direção a um destino que decidimos ser Montevidéu, mas que apenas revelou a armadilha onde estávamos metidos. Antes, precisava passar pela minha cidade e pegar uma declaração paterna, já que eu era dimenor (naquela época completávamos 80 anos sem atingir a maioridade; hoje é diferente; com apenas um ano já é possível zapear do programa da Xuxa para o noticiário).
O álibi era a viagem encarada como a verdadeira iniciação do jornalista. Nem precisava mais ir às aulas que eu abandonara covardemente diante da perspectiva de me transformar no ghost writer do Faraó. Moço, eu já esgrimia essa instituição nacional que é a meia verdade. A viagem patrocinada pelo emprego, com tudo em cima, era diferente daquele ermo onde nos metemos. Simplesmente fomos para a estrada sem nada no bolso. Eu nem levava caneta e papel, que dirá gravador ou máquina fotográfica. Simplesmente arrastei pela estrada as congas, cholitas, coturnos ou não lembro mais que tipo de pisante me acompanhou naquele delírio.
A idéia era ir de carona, mas sabemos como aquele miolo do Rio Grande gosta de preservar as tradições. É possível encontrar até hoje o célebre slogan “aqui tem mumu”, e as cidades ao longo da carreteira ostentam ainda aquele ar blasé de fog em meio à madrugada, entrevisto na parada de uma interminável viagem de trem rumo à fronteira. Não havia carona porque nenhum carro passava por ali. Precisei pegar alguns ônibus, já apartado do resto da turma, que fez sucesso em Santa Maria e resolvera ficar por lá. Até hoje a estadia do grupo no coração do estado gaúcho é lembrada por uma frase dita para a massa de meninas deslumbradas e rapazes desconfiados que rodearam a troupe por mais de uma semana: desculpem não vomitar na cara de vocês! dita pelo mais radical dos artistas de rua. A transgressão chegava ao solo sagrado da pátria pampeana, impulsionada pela nação em silêncio e o raspar de sabres.
Eu vagava só em meio aos quero-queros, preparando meu discurso para quando chegasse diante do último obstáculo: a licença para sumir do mapa. Ainda tinha esperança de reencontrar a turma já em Livramento, que, ao contrário de Uruguaiana, que guarda prudentes dois quilômetros de rio de distância, está abraçada aos castelhanos como irmã xipófaga. Eu já me sentia no Exterior, no momento em que atravessava a rua para mendigar um café. Faltava apenas esperar o circo chegar para então inaugurarmos a nossa operação Condor.
Como não podia gastar nada, já que a perspectiva era chegar até o Prata, fui dormir no lugar mais improvável para uma época hoje lembrada como de terror absoluto: a delegacia de polícia. Já tinha feito a experiência meses antes, em viagens paralelas que prepararam esta que agora tomava todo o meu tempo. Conseguia um lugar fora da cela, mas minha mordomia acabou quando mudou o plantão. O novo hospedeiro desconfiou do meu aspecto, e das mumunhas ditas em tom sério demais para alguém que estava simplesmente matando aula. E me encaminhou para o quartel mais próximo, onde eu deveria enfrentar o temível S-2.
Por sorte o capitão não estava e fui então convidado a sair da cidade. Você vai hoje, se amanhã te pegamos por aqui...E foi assim que juntei minha mochila e usei os últimos tostões para a volta. Era o fim da ilusão de que eu poderia escapar de uma vida normal e viver um romance de aventuras. Quixote sem ter lido livros suficientes para alimentar a loucura, saí de cena antes do primeiro moinho de vento. Trazia o ar atordoado de quem procurou algo impossível de achar, como o personagem de Paris, Texas, de Wim Wenders, mas sem a guitarra ao fundo. A solução era ficar na fila de espera dos poucos jornais que de vez em quando abriam alguma vaga.
Será que precisavam de um escriba que não fechava os punhos em cima da mesa, com os braços estendidos, desapertava a gravata e olhava para o infinito como faziam os jornalistas bem postos? Será que era possível confiar em alguém que não andava apressadamente na redação para sugerir dinamismo? Ou que não pedia o lanche logo que chegasse, sempre no final do expediente, só para impressionar o diretor (“veja, estou aqui desde cedo, nem tive tempo de al-mo-çar”, diriam esses com a boca cheia de iogurte)? Será que precisavam de um ex-viajante, que por pouco não dançou numa cela qualquer e foi salvo pela própria falta de importância no concerto internacional das nações?
Não, não precisavam. As empresas já estavam ocupadas pela carranca que acabou empurrando a nata da geração para a imprensa alternativa. E quem tinha sido expulso do romantismo da primeira grande viagem e agora aportava nas redações em pânico, esse era o momento de iniciar uma longa jornada. Completamente inverossímil, como todas as outras. Porque tudo passou como se fosse apenas um instante, e nossa vida encontrou o caminho simplesmente fazendo as malas toda vez que o jornalismo nos pregava um novo susto.
Por vingança, inventei minha própria charada taquigráfica. Os garranchos eram a forma de ocultar a identidade perdida na época em que cruzei o pampa. Era um código, que nunca decifrei. Passo os olhos pelas folhas borradas de sinais e noto que a única forma de salvação foi guardar tudo na memória, não para usar no fechamento, mas para que o tempo me fizesse companhia, como um cavalo encilhado que jamais montamos.
* Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
* Por Nei Duclós
Talvez não tenha sido o AI-5, decretado no ano anterior, mas o horror às aulas de taquigrafia o motivo principal para eu abandonar as aulas do Curso de Jornalismo da Ufrgs. O tranco da nossa professora alemã assombrava aquela matéria que substituía os garranchos por hieróglifos, o que nos transformava em escravos egípcios ou no máximo em secretárias da ONU. Já era o segundo ano que eu enfrentava o rigor de uma prática cara à segunda Guerra Mundial. Tinha certeza de que seria novamente reprovado por não saber que dois pontinhos ao lado do arabesco significavam “segundo o senhor presidente da República”.
Por isso, escudado nas mais justas desculpas, como o fato (real) de que os melhores professores tinham sido expulsos e restávamos sós depois da grande dispersão e derrota, aceitei o convite absurdo de um grupo de desocupados como eu. Partimos numa viagem suicida cruzando o pampa, em direção a um destino que decidimos ser Montevidéu, mas que apenas revelou a armadilha onde estávamos metidos. Antes, precisava passar pela minha cidade e pegar uma declaração paterna, já que eu era dimenor (naquela época completávamos 80 anos sem atingir a maioridade; hoje é diferente; com apenas um ano já é possível zapear do programa da Xuxa para o noticiário).
O álibi era a viagem encarada como a verdadeira iniciação do jornalista. Nem precisava mais ir às aulas que eu abandonara covardemente diante da perspectiva de me transformar no ghost writer do Faraó. Moço, eu já esgrimia essa instituição nacional que é a meia verdade. A viagem patrocinada pelo emprego, com tudo em cima, era diferente daquele ermo onde nos metemos. Simplesmente fomos para a estrada sem nada no bolso. Eu nem levava caneta e papel, que dirá gravador ou máquina fotográfica. Simplesmente arrastei pela estrada as congas, cholitas, coturnos ou não lembro mais que tipo de pisante me acompanhou naquele delírio.
A idéia era ir de carona, mas sabemos como aquele miolo do Rio Grande gosta de preservar as tradições. É possível encontrar até hoje o célebre slogan “aqui tem mumu”, e as cidades ao longo da carreteira ostentam ainda aquele ar blasé de fog em meio à madrugada, entrevisto na parada de uma interminável viagem de trem rumo à fronteira. Não havia carona porque nenhum carro passava por ali. Precisei pegar alguns ônibus, já apartado do resto da turma, que fez sucesso em Santa Maria e resolvera ficar por lá. Até hoje a estadia do grupo no coração do estado gaúcho é lembrada por uma frase dita para a massa de meninas deslumbradas e rapazes desconfiados que rodearam a troupe por mais de uma semana: desculpem não vomitar na cara de vocês! dita pelo mais radical dos artistas de rua. A transgressão chegava ao solo sagrado da pátria pampeana, impulsionada pela nação em silêncio e o raspar de sabres.
Eu vagava só em meio aos quero-queros, preparando meu discurso para quando chegasse diante do último obstáculo: a licença para sumir do mapa. Ainda tinha esperança de reencontrar a turma já em Livramento, que, ao contrário de Uruguaiana, que guarda prudentes dois quilômetros de rio de distância, está abraçada aos castelhanos como irmã xipófaga. Eu já me sentia no Exterior, no momento em que atravessava a rua para mendigar um café. Faltava apenas esperar o circo chegar para então inaugurarmos a nossa operação Condor.
Como não podia gastar nada, já que a perspectiva era chegar até o Prata, fui dormir no lugar mais improvável para uma época hoje lembrada como de terror absoluto: a delegacia de polícia. Já tinha feito a experiência meses antes, em viagens paralelas que prepararam esta que agora tomava todo o meu tempo. Conseguia um lugar fora da cela, mas minha mordomia acabou quando mudou o plantão. O novo hospedeiro desconfiou do meu aspecto, e das mumunhas ditas em tom sério demais para alguém que estava simplesmente matando aula. E me encaminhou para o quartel mais próximo, onde eu deveria enfrentar o temível S-2.
Por sorte o capitão não estava e fui então convidado a sair da cidade. Você vai hoje, se amanhã te pegamos por aqui...E foi assim que juntei minha mochila e usei os últimos tostões para a volta. Era o fim da ilusão de que eu poderia escapar de uma vida normal e viver um romance de aventuras. Quixote sem ter lido livros suficientes para alimentar a loucura, saí de cena antes do primeiro moinho de vento. Trazia o ar atordoado de quem procurou algo impossível de achar, como o personagem de Paris, Texas, de Wim Wenders, mas sem a guitarra ao fundo. A solução era ficar na fila de espera dos poucos jornais que de vez em quando abriam alguma vaga.
Será que precisavam de um escriba que não fechava os punhos em cima da mesa, com os braços estendidos, desapertava a gravata e olhava para o infinito como faziam os jornalistas bem postos? Será que era possível confiar em alguém que não andava apressadamente na redação para sugerir dinamismo? Ou que não pedia o lanche logo que chegasse, sempre no final do expediente, só para impressionar o diretor (“veja, estou aqui desde cedo, nem tive tempo de al-mo-çar”, diriam esses com a boca cheia de iogurte)? Será que precisavam de um ex-viajante, que por pouco não dançou numa cela qualquer e foi salvo pela própria falta de importância no concerto internacional das nações?
Não, não precisavam. As empresas já estavam ocupadas pela carranca que acabou empurrando a nata da geração para a imprensa alternativa. E quem tinha sido expulso do romantismo da primeira grande viagem e agora aportava nas redações em pânico, esse era o momento de iniciar uma longa jornada. Completamente inverossímil, como todas as outras. Porque tudo passou como se fosse apenas um instante, e nossa vida encontrou o caminho simplesmente fazendo as malas toda vez que o jornalismo nos pregava um novo susto.
Por vingança, inventei minha própria charada taquigráfica. Os garranchos eram a forma de ocultar a identidade perdida na época em que cruzei o pampa. Era um código, que nunca decifrei. Passo os olhos pelas folhas borradas de sinais e noto que a única forma de salvação foi guardar tudo na memória, não para usar no fechamento, mas para que o tempo me fizesse companhia, como um cavalo encilhado que jamais montamos.
* Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
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