domingo, 22 de maio de 2011







Mão na fuça

* Por Ronaldo Bressane

Quem é você? O que define o que você é? O teu nome, o nome dos teus pais, o teu apelido de escola, o teu título? Teu apelido na rua, teu nickname no MSN, teu nom de plumme na lombada? Teus posts no blog, teu curriculum vitae, teu perfil no Orkut? Ou você é aquele fato obscuro na infância, aquela chinelagem na adolescência, aquele triunfo na quase-adultescência ou aquela broxada na rua da amargura? Dá tempo de voltar atrás no tempo e refazer uma mancha do passado, como se trocasse a velha e arranhada moldura de fórmica do teu retrato por uma nova, dourada, envernizada, polida? Dá pra dividir a vida em duas partes, uma em que você desafia os limites do corpo, outra em que desafia os limites da mente? Você é você ou as pessoas com que você está? Você é seus pais, seus amigos, seus colegas, seus filhos? Você é sua cidade, sua fuga, seu hobby ou seu trabalho?

Essas e outras perguntas ficam batendo na cabeça depois que terminei de ler Mãos de Cavalo (e ficar com interrogações no quengo pós-leitura não é pouco pra um sujeito tão distraído quanto este). Afinal, o legítimo romance de formação do gaúcho-paulistano Daniel Galera, 26, versa justamente sobre a identidade, seu nascimento, sua deformação – sua orfandade. O lance se propõe já do título: Mãos de Cavalo é o apelido de infância do protagonista, um cirurgião plástico trintão chamado simplesmente de Hermano. Não só o ganha-pão do personagem principal – observado muito de perto pelo narrador, sempre sob fluente discurso indireto livre –, é fundamental à compreensão do sujeito: um cara que ascendeu social e financeiramente bisturando identidades alheias. Mas também seu sobrenome tem peso de significação, como se o personagem só pudesse ser explicado em relação a, ao lado de, como todo irmão o é; e ainda por cima em língua estrangeira, o que sugere sua condição e seu humor de estranho em terra estranha, embora pareça ser um cidadão dono do próprio passe.

A escolha criteriosa dos nomes do segundo romance de um dos co-editores da Livros do Mal prossegue com os curiosos apelidos dos seus amigos – gente como Morsa, Pedreiro, Nêgo Cromado e o maior rival de Mãos de Cavalo, seu Hermógenes e sua alma gemeamente torta, o sombrio Bonobo. Persiste no batismo do colega de alpinismo do cirurgião, o babaca-beleza dono de academia Renan (“o tipo de sujeito que assina errado o próprio nome”), na bipolar Adri, a esposa artista plástica – quase separada da vida interior de Hermano; como seu nome, cortada ao meio –, e em sua filha Nara, a rimar com o nome de uma quase-namorada de adolescência, Naiara. Lido assim, o livro pode parecer um pouco esquemático; mas, creia, o tom de confissão leve e a perspectiva tridimensional do protagonista – de quem ora se gosta, ora se estranha – só faz com que o leitor acelere sua leitura até o fim. (Esquematismos são essenciais ao resenhamento; criticar, essa arte tramada a bisturi, deve ser algo parecido com fazer uma biópsia – jamais uma autópsia, porém. Pena que haja por aí tantos críticos-legistas ocupando jornais e revistas...)

Ah, sim, você quer saber do que trata a história. Bom, digamos que a trama, estabelecida com vitalidade, em português claro e enunciada com minúcia (às vezes até um pouco demais...), narra uma manhã na vida de um cirurgião – que, enquanto segue ao encontro de um amigo com quem irá viajar para escalar uma montanha, o misterioso Cerro Bonete, na Bolívia, volta-se para episódios de seu passado remoto, na infância, na adolescência e no princípio da maturidade, até que encontra pelo caminho um fato que determinará não só quem ele será dali para a frente, como também definir quem um dia ele foi. No mínimo, temos ao fim de Mãos de Cavalo um protagonista bem diverso daquele que iniciou a narrativa: um feito não só para cirurgiões plásticos como também para hábeis manipuladores do gênero educação sentimental. Parece pouco – mas é o pouco que uma cicatriz faz de um rosto um rosto.

Um trecho:

Hermano pediu para descer de novo logo após o Palhação, furando a ordem de descida pré-combinada. O desafio estava implícito. A autorização foi concedida.
Ao invés de se posicionar para a descida no topo da escadaria, a posição oficial de largada, Hermano apoiou a bicicleta em um poste e começou a andar pela calçada, procurando alguma coisa no chão. Achou alguns tijolos abandonados no meio do capim. O Mononucleose perguntou o que ele estava fazendo, se ia descer de uma vez ou não. Hermano não respondeu, apenas encostou os tijolos no meio-fio, criando um pequeno degrau no desnível entre a rua e a calçada. Pouco a pouco, todas as conversas foram parando e as atenções se voltando para Hermano. Pediu a dois amigos do Bobono que se afastassem do topo da escadaria. O Bonobo também tinha parado de beijar a loira e estava acompanhando a cena. Quando Hermano começou a empurrar a bicicleta rua acima, sua intenção foi ficando clara aos demais. O Palhação disse baixinho que ia dar merda. Hermano se afastou uns cinqüenta metros rua acima, parou, montou na bicicleta e começou a pedalar com toda a força na direção da escadaria. Ao passar pelo Bonobo, olhou bem na cara dele. Agora ele estava prestando atenção. Agora o Bonobo ia ver. Usou o degrau de tijolos para facilitar a subida na calçada e quando se lançou escadaria abaixo já estava em alta velocidade. Continuou girando os pedais com toda a força que tinha. Ninguém jamais desceria aquela escadaria mais rápido do que ele estava descendo agora. Era impossível. Tinha impressão de que as rodas nem tocavam o chão. O mundo a seu redor se transformou em um borrão e seus olhos lacrimejavam com o vento. Nos primeiros segundos de descida, percebeu que já não tinha controle da bicicleta. Mesmo assim continuou pedalando mais e mais. Sabia que ia cair. E todos iam ver ele cair. Enquanto descia, teve consciência de que era apenas isso que o movia a descer aquela escadaria tantas vezes, a possibilidade da queda, de se arrebentar no chão. E essa seria a mais espetacular de todas. Era o que tinha a dizer às pessoas lá em cima. Estava pronto para sangrar. Era seu talento. Se o Bonobo tinha sido capaz de bater em vinte ao mesmo tempo, agora ele seria capaz de cortar, quebrar, ralar, escoriar, debulhar, raspar, fraturar, arranhar, perfurar e esmagar seu próprio corpo de um jeito que ninguém jamais esqueceria. Ao passar sobre a lombada no meio do percurso, Hermano puxou o guidom para cima e lançou a bicicleta no ar. Aterrissou cinco metros à frente. Com a força do impacto, o guidom deu um giro completo para a direita e a bicicleta rebateu para a esquerda, caindo sobre a escadaria de degraus de pedra. Ciclista e bicicleta embolotaram escada abaixo. Não havia dor, apenas uma sensação de total descontrole que suscitava mais resignação que pânico. Degraus de pedra, tubos de aço e pneus de borracha alternavam golpes contra todas as partes de seu corpo. Era quase como surfar uma onda, pegar um jacaré. A única coisa que veio a sua mente foi uma cena de um filme: o último dos interceptadores V8 capotando no deserto apocalíptico, saltando e rodopiando como em um solo de ginástica olímpica, projetando jatos de areia contra o céu azul claro, e segundos depois sai de dentro da carroceria destruída o guerreiro da estrada, há sangue no seu rosto, um ferimento terrível no olho, outro no braço, e ele se arrasta para fora do carro pela areia escaldante, a areia colando no sangue, grudando nas feridas abertas, os motoqueiros assassinos descem o barranco em sua direção para conferir se ele ainda está vivo, e ele ainda está vivo, gravemente ferido e ensangüentado e abandonado, mas é possível vê-lo e colocar-se em seu lugar. Quando seu próprio corpo parou de capotar, Hermano levou as mãos ao rosto, depois as afastou e ali estava ele, na ampla palma de suas mãos, nos dedos fortes e grossos. Havia gente correndo escadaria abaixo, em sua direção. Os inimigos descendo o barranco para conferir se ele ainda estava vivo. Os espectadores correndo para socorrer o herói do filme. O seu filme. A cena ficou perfeita. A maquiagem não podia ter sido mais realista. Como o sangue é uma coisa bonita, pensou antes de desmaiar.

Nosso hermano Galera lançou a bagaça esta quarta-feira, 3-5, na Livraria da Vila (Fradique Coutinho, 915), prosseguindo a bebemoração, como de costume, na Merça (rua Rodésia, 34, V Madalena), por supuesto, y sin embargo. Ah, sim: para desmontar quase toda a lógica da resenha acima, o autor explica que o nome Hermano foi escolhido de modo totalmente aleatório - só pra sacanear um amigo. É em porcas como esta que se torce o rabo da crítica.

*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).

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