"Arqueologia" familiar
O escritor norte-americano
Ernest Hemmingway, nascido em 21 de junho de 1898, em Oak Park, no
Estado de Illinois, conhecido no mundo todo não apenas pelos livros
de sucesso que publicou – muitos dos quais serviram de roteiro para
filmes campeões de bilheteria de Hollywood, como “O Velho e o
mar”, “Por quem os sinos dobram” e “Adeus às armas”, entre
outros –, mas pelas inúmeras aventuras que viveu, ficaria
frustrado ao saber (se estivesse vivo) que por muito tempo foi um
quase desconhecido da família, pelo menos da terceira geração
dela, os seus netos, sobrinhos, etc.
Isso,
a julgar pela confissão, feita em 1984, pela neta Margaux
Hemmingway, também uma celebridade, só que em outra arte: o cinema.
A atriz justificou o fato de não conhecer quase nada da trajetória
artística e da vida desse controvertido ancestral, afirmando, na
ocasião, que quando o avô se matou, em Cuba (onde residia), com um
tiro de fuzil, em 2 de julho de 1961, ela era muito pequena. Tinha
somente seis anos de idade e não se recordava de quase nada do
ilustríssimo parente. Aliás, abrindo um parêntese, o pai do
romancista, um médico de pouco prestígio, também cometeu suicídio,
em 1928, quando o filho tinha trinta anos de idade. E a neta já
atentou contra a própria vida em duas ocasiões. Parece uma maldição
de família!
Mas
voltando ao nosso tema, Margaux, ao contrário de tantas outras
pessoas que contam com celebridades na parentela, resolveu reparar a
injustiça com a memória de Ernest Hemmingway. Contratada por uma
rede norte-americana de televisão, em 1984, para fazer um
documentário sobre a vida do escritor, teve a oportunidade de
conhecer detalhes pitorescos e reveladores não somente do talentoso
romancista e repórter (um dos jornalistas mais brilhantes da sua
geração), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1954, mas de
um homem inquieto e generoso, idealista e abnegado, que correu o
mundo em busca de guerras para lutar e de aventuras para viver. E a
rigor, emoções é que nunca faltaram a essa figura controvertida e
grandiosa.
Sua
vida, certamente, foi muito mais agitada e sobretudo excitante do que
os seus consagrados romances, situados hoje, sem favor algum, entre
os mais importantes da literatura mundial de todos os tempos. Por
exemplo, em 1918, quando tinha apenas 20 anos de idade, engajou-se
voluntariamente no exército do seu país, depois que os Estados
Unidos decidiram entrar na Primeira Guerra Mundial. Foi dessa
experiência, aliás, que surgiu o enredo do consagrado romance
“Adeus às Armas”, publicado em 1929. O escritor, todavia,
desencantou-se com seus conterrâneos, principalmente com as
convenções sociais vigentes em sua terra natal, mesmo tendo sido
acolhido como herói. Por causa desse desencanto, decidiu exilar-se,
voluntariamente, em Paris. Em 1929, voltou a morar na pátria, posto
que por pouco tempo, mas isolou-se e passou a viver longe de tudo e
de todos.
Na
capital francesa, para onde sempre voltava quando o tédio batia, fez
parte do grupo de intelectuais boêmios, conhecido como a “geração
perdida”, um bando de idealistas inconformados, dispostos a mudar o
mundo, investindo contra valores estabelecidos, mas injustos, e
contra os poderes constituídos. Um dos seus maiores amores foi a
Espanha. Entre outras coisas, apreciava demais a famosa festa de San
Firmin, em Pamplona, com a maluca corrida de touros pelas ruas da
cidade, tradição que é mantida até os dias atuais. Realizou dois
safaris à África, que lhe renderam dois magníficos livros, onde
ressalta muito mais o talento do competente repórter do que o do
criativo romancista: “As Verdes Colinas da África” e “Hora
Triunfal do Senhor Macomber”, ambos publicados em 1935.
Inconformado
com o fascismo, que avançava pela Europa e já ameaçava o mundo,
aderiu aos republicanos espanhóis, em 1936, tão logo estourou a
guerra civil espanhola, lutando contra as forças do caudilho
Francisco Franco (que se autodenominava “generalíssimo”),
apoiadas por Adolf Hitler e Benito Mussolini. Um dos seus derradeiros
gestos de rebeldia foi a amizade que firmou com Fidel Castro, logo
depois que este chegou ao poder, motivo de ácidas críticas e
recriminações (chegou a ser chamado de “traidor” em alguns
círculos dos Estados Unidos), e que sustentou pelo resto da vida.
Tudo
isso a neta apurou nos respectivos locais dos fatos e se surpreendeu
com o que descobriu. Confessou que pôde conhecer, finalmente, o
famoso avô muito mais do que supunha ser possível. Para isso,
Margaux viajou muito, na trilha do ousado aventureiro. Foi, por
exemplo, a Key West, onde Ernest Hemmingway gostava de pescar. Esteve
em Cuba, na modesta casa em que o escritor viveu e onde se matou.
Viajou a Paris e esteve em todos os centros de boêmia que o avô
frequentou. E, claro, não podia deixar de visitar a Espanha e
principalmente Pamplona, onde também se excitou, como o romancista,
com a famosa festa de San Firmin.
Ao
fim dessa jornada sentimental, que resultou em um magnífico e
detalhado documentário, Margaux concluiu: “Foi uma procura pessoal
para mim. Averiguar o que fez e conhecer suas histórias e muitas
coisas que não figuram sequer em livros, foi fascinante e
revelador”. Antes, porém, foi necessário que a neta de Ernest
Hemmingway fosse contratada para fazer um documentário para a
televisão. E se não fosse? Tomaria essa iniciativa? Provavelmente
não! Talvez jamais conhecesse como foi e o que realizou seu ilustre
avô. É como diz o surrado, porém sempre oportuno, clichê: “Santo
de casa, nem sempre (ou quase nunca) faz milagres”.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
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