Como é fácil escrever
* Por Urariano Mota
Nos últimos anos tem surgido um súbito interesse pelo ato de escrever. Jovens e maduros têm se debruçado de repente sobre a bruxaria que é o escrever sem antes muito ler, algo tão extraordinário quanto o falar sem jamais ter ouvido. As mais difíceis provas de concursos para empregos públicos e de vestibulares exigem uma torturante redação. E, aparentemente estranho, até headhunters, até selecionadores de empresas privadas descobriram a pólvora: que não há bom falante de inglês, nem bom falante de qualquer língua estrangeira que não seja antes um bom conhecedor da própria língua, aquela maltratada e desprezada que o indivíduo ouve desde o ventre da mãe.
Daí que no mercado pululem e pulem livros que dizem ensinar a escrever sem o processo longo, permanente, educador de ler. Daí que apareçam prodígios como “Escrever é fácil”, um livro cujo título já é uma declaração de engodo.
Imaginem lições do gênero “Porque escrever não passa disso: uma técnica de comunicação...”. Numa só frase o autor do remédio para incautos faz uma brevidade-maravilha: que escrever é uma técnica!, e de comunicação. Sabemos todos que técnica é um modo, um método prático de se fazer algo, plenamente transmissível por treino, por repetição. (Sinto o autor assentindo com o queixo, “pois é isso mesmo”. ) Pois acabamos de entrar no reino da mais pura animalidade. Temos que descer às profundas para de lá forcejar um retorno. Vejam.
No reino das profundas onde nos achamos já vemos que escrever, se é uma técnica, certamente não é como uma técnica de consertar um radinho de pilha ou uma televisão. “Mas é, de uma outra maneira”, insiste o autor do manual-maravilha. De que maneira ? ousaríamos perguntar. Ao que ele nos responde: “Usem sempre a ordem direta: sujeito, verbo, complemento. Escrevam períodos curtos usando palavras de uso comum”. Ah, e mais, de passagem, ele nos diz: “Evitem também a dupla negação. Há quem escreva: ‘Eu não entendi nada’. Ora, se não entendeu nada, então entendeu tudo, certo? Lembrem-se da regra de álgebra: menos com menos é igual a mais! Em vez disso, prefiram: ‘Nada entendi’ ”. Muito bom. Se com esse gênero de mestre as novas gerações aprenderem a escrever, estamos perdidos. Porque vejam, a profundidade das profundas não tem fundo, não tem limite. Porque vejam.
Primeiro, um mestre não deveria recolher exemplos de disciplinas que desconhece. Menos com menos jamais foi igual a mais, sequer na aritmética – o que existe é uma operação, de multiplicação, cujo produto de números negativos, etc. Segundo, o que dá um sinal contrário em matemática não faz o mesmo quando se escreve. Pelo contrário, “não entendi nada” tem um peso expressivo, de reforço de negação, que não está presente em “nada entendi”. Quem assim se expressa é cidadão inglês de anedota. Terceiro, é muita estupidez fechar o pensamento na ordem direta, tão só e somente. O pensamento é, antes, o pulo, o salto, o alcance da essência numa desordem que é uma nova ordem, que não se expressa tão burramente como em “O bebê é bonito”. Vejam, essa frase anterior é de uma burrice que rejeita o poeta João Cabral em “De sua formosura deixai-me que diga: é tão belo como um sim numa sala negativa”.
E reduzir a escrita à finalidade da comunicação traz danos irreparáveis ao pensamento. Um deles é subestimar a capacidade de compreensão do público leitor. Esse é um preconceito que termina por contagiar a própria criação. Para melhor “comunicar”, começariam a ser censuradas manifestações importantes do fazer e fazer-se humano. Ou seja: baixem o nível, porque o povo é burro.
E como não temos mais tempo, deixem-nos por favor soltar de vez mais alguns trechos de crua tragédia para a sensibilidade humana no livro:
“Toda frase é uma equação ... vírgulas geralmente quebram a fluência da leitura, exigindo que os olhos e a mente do leitor avancem aos trancos pelo texto ... a lógica é uma parte da filosofia encarregada justamente de pôr as idéias em ordem ... Lembrem-se sempre de que a concepção precede a criação ... Como puderam ver, escrever é fácil. Desde que tenham o que dizer” .
De frases que são verdadeiras equações até o escrever que é fácil para quem tem o que dizer, só nos resta parodiar Mark Twain, quando ele se referia à luta para deixar de fumar: escrever é fácil, eu mesmo já tentei várias vezes.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
* Por Urariano Mota
Nos últimos anos tem surgido um súbito interesse pelo ato de escrever. Jovens e maduros têm se debruçado de repente sobre a bruxaria que é o escrever sem antes muito ler, algo tão extraordinário quanto o falar sem jamais ter ouvido. As mais difíceis provas de concursos para empregos públicos e de vestibulares exigem uma torturante redação. E, aparentemente estranho, até headhunters, até selecionadores de empresas privadas descobriram a pólvora: que não há bom falante de inglês, nem bom falante de qualquer língua estrangeira que não seja antes um bom conhecedor da própria língua, aquela maltratada e desprezada que o indivíduo ouve desde o ventre da mãe.
Daí que no mercado pululem e pulem livros que dizem ensinar a escrever sem o processo longo, permanente, educador de ler. Daí que apareçam prodígios como “Escrever é fácil”, um livro cujo título já é uma declaração de engodo.
Imaginem lições do gênero “Porque escrever não passa disso: uma técnica de comunicação...”. Numa só frase o autor do remédio para incautos faz uma brevidade-maravilha: que escrever é uma técnica!, e de comunicação. Sabemos todos que técnica é um modo, um método prático de se fazer algo, plenamente transmissível por treino, por repetição. (Sinto o autor assentindo com o queixo, “pois é isso mesmo”. ) Pois acabamos de entrar no reino da mais pura animalidade. Temos que descer às profundas para de lá forcejar um retorno. Vejam.
No reino das profundas onde nos achamos já vemos que escrever, se é uma técnica, certamente não é como uma técnica de consertar um radinho de pilha ou uma televisão. “Mas é, de uma outra maneira”, insiste o autor do manual-maravilha. De que maneira ? ousaríamos perguntar. Ao que ele nos responde: “Usem sempre a ordem direta: sujeito, verbo, complemento. Escrevam períodos curtos usando palavras de uso comum”. Ah, e mais, de passagem, ele nos diz: “Evitem também a dupla negação. Há quem escreva: ‘Eu não entendi nada’. Ora, se não entendeu nada, então entendeu tudo, certo? Lembrem-se da regra de álgebra: menos com menos é igual a mais! Em vez disso, prefiram: ‘Nada entendi’ ”. Muito bom. Se com esse gênero de mestre as novas gerações aprenderem a escrever, estamos perdidos. Porque vejam, a profundidade das profundas não tem fundo, não tem limite. Porque vejam.
Primeiro, um mestre não deveria recolher exemplos de disciplinas que desconhece. Menos com menos jamais foi igual a mais, sequer na aritmética – o que existe é uma operação, de multiplicação, cujo produto de números negativos, etc. Segundo, o que dá um sinal contrário em matemática não faz o mesmo quando se escreve. Pelo contrário, “não entendi nada” tem um peso expressivo, de reforço de negação, que não está presente em “nada entendi”. Quem assim se expressa é cidadão inglês de anedota. Terceiro, é muita estupidez fechar o pensamento na ordem direta, tão só e somente. O pensamento é, antes, o pulo, o salto, o alcance da essência numa desordem que é uma nova ordem, que não se expressa tão burramente como em “O bebê é bonito”. Vejam, essa frase anterior é de uma burrice que rejeita o poeta João Cabral em “De sua formosura deixai-me que diga: é tão belo como um sim numa sala negativa”.
E reduzir a escrita à finalidade da comunicação traz danos irreparáveis ao pensamento. Um deles é subestimar a capacidade de compreensão do público leitor. Esse é um preconceito que termina por contagiar a própria criação. Para melhor “comunicar”, começariam a ser censuradas manifestações importantes do fazer e fazer-se humano. Ou seja: baixem o nível, porque o povo é burro.
E como não temos mais tempo, deixem-nos por favor soltar de vez mais alguns trechos de crua tragédia para a sensibilidade humana no livro:
“Toda frase é uma equação ... vírgulas geralmente quebram a fluência da leitura, exigindo que os olhos e a mente do leitor avancem aos trancos pelo texto ... a lógica é uma parte da filosofia encarregada justamente de pôr as idéias em ordem ... Lembrem-se sempre de que a concepção precede a criação ... Como puderam ver, escrever é fácil. Desde que tenham o que dizer” .
De frases que são verdadeiras equações até o escrever que é fácil para quem tem o que dizer, só nos resta parodiar Mark Twain, quando ele se referia à luta para deixar de fumar: escrever é fácil, eu mesmo já tentei várias vezes.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Argumentação irrepreensível. O clímax ficou por conta de "Desde que tenham o que dizer". E como diz Pedro: " E não é?"
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