Trinta anos além da conta
* Por Gustavo do Carmo
Hélio e Hérica foram feitos um para o outro. Hélio levou anos para se convencer disso. Conheceram-se na pós-graduação de cinema. Hérica ainda namorava o terceiro namorado quando iniciou o curso. Hélio era virgem. Virgem de tudo: boca, sexo e experiência de vida.
Ele passou trinta anos sem ter uma única namorada. Só teve decepções amorosas. Amores platônicos. Viu primos, amigos e irmã se casarem e terem filhos. Culpavam-no de nunca sair de casa e nem freqüentar danceterias. Como se fosse fácil conquistar uma mulher em uma boate. Odiava o ambiente escuro, piscante e barulhento das discotecas. Ele não se sentia obrigado a freqüentar isso só para conquistar alguém.
Também o culpavam pela sua aparência física desleixada. Mesmo assim, Hélio não tinha nenhuma vontade de se esforçar para ser vaidoso. Nunca deixava de tomar banho, mas não queria ter mania de limpeza. Passava desodorante, mas ele vencia rapidamente por causa do calor. A barba só fazia de quinze em quinze dias ou, nos tempos da faculdade, de três em três. Tinha horror a espremer espinhas. Doía muito.
Também nunca trabalhara na vida. Era sustentado pelo pai pão-duro, mas não tinha coragem de procurar um emprego. Hélio era um medroso. A pós-graduação era a chance de fazer uma ocupação para a sua família não dizer que ele era vagabundo. Sua única oportunidade de fazer amigos e... namorar. Se tivesse sorte, conseguir um emprego.
O novo curso era a sua décima-terceira tentativa de alcançar os seus objetivos. Das anteriores, os amigos não deixaram contatos ou o desprezaram. Inclusive as moças. Depois de seis meses, conheceu melhor os novos amigos. Inclusive Hérica, que, aliás, foi a última com ele fez amizade. Ela parecia ser a mais antipática. Era a única que morava na zona sul do Rio, onde ficava a faculdade. Ah! Claro! Hélio era suburbano de Olaria.
Um dia, por acaso, Hélio foi a única companhia de Hérica para o almoço de um sábado de aula. Era antevéspera de feriado e os amigos mais próximos de ambos haviam faltado. Conversaram bastante. Hérica falou de sua experiência profissional, do término do seu namoro. Hélio de sua vida frustrada e imatura. A conversa esquentou. Hélio e Hérica trocaram selos.
Na aula seguinte, quinze dias depois, com a turma novamente cheia e os colegas mais próximos de ambos presentes, Hélio já estava preparado para um tratamento distante por parte de Hérica. Já se conformava com a frieza natural dela. Estava enganado.
Hérica lhe procurou e o convidou para se sentar perto dela. No intervalo para o café, não se desgrudou dele. Uma outra colega, mais íntima, sentiu ciúmes. Não que Hélio não quisesse a companhia de Hérica, mas ele ficou com medo de decepcioná-la. Contou-lhe todos os seus defeitos, como se estivesse a preparando para o pior.
— Deixa disso, Hélio! Para de bobagem! Eu confio em você! Eu estou apaixonada! Confessou Hérica.
— Eu também estou! Mas não acredito que o namoro vá para frente.
— Eu acredito! Quer apostar?
— Quero! Não vai durar uma semana.
— Pessimista! Bobo! Eu aposto vinte anos.
— E você é otimista demais! Duvido que vá me agüentar durante esse tempo todo. Eu sou preguiçoso, relaxado, desatento e enrolado. Em compensação, sou fiel, simpático, honesto e sincero.
— Eu sei. Mas se fosse outra mulher, já teria fugido com tudo de ruim que você me falou de si próprio.
— Não é uma propaganda negativa. É uma precaução. Quero o bem das pessoas. Não quero que se arrependa depois.
— Eu sei, eu sei.
— E se você se mudar para São Paulo?
— Eu não vou me mudar. Se eu mudar você vai comigo.
— Então você quer namorar comigo, mesmo? Se a gente for pra cama e você terminar, não quero que fique me acusando de ter te usado só para te comer ou arrumar emprego. E eu não vou mudar meu jeito de ser. Não vou para São Paulo. Não freqüento discotecas. Só saio para ir a restaurantes, cinema, teatro e shopping. No dia dos namorados você me lembra de pedir presente e escolhe o que quer. Sou esquecido. Fiquei tanto tempo sem namora...
Hélio foi calado por um longo beijo de língua. Testemunhado por todos na faculdade. Ouviram-se aplausos.
Um mês depois, Hélio e Hérica foram para a cama. Hélio perdeu a virgindade. Mais duas semanas, Hélio já estava trabalhando na produtora de teatro do pai de Hérica. No ano seguinte se casaram. A pós já havia terminado. Passaram-se os anos. Tiveram dois filhos: uma menina (Heneida) e um menino (Heitor). Houve algumas crises de ciúmes dos dois lados. Quase romperam, mas faziam as pazes, sempre com lua-de-mel.
Hélio já tinha perdido a aposta de Hérica no início do namoro. Ela também. Chegaram aos cinqüenta anos de casamento, com quatro netos: dois de cada filho.
Hélio e Hérica foram feitos um para o outro. Hélio levou cinquenta anos para se convencer disso. Na semana seguinte, Hérica pediu o divórcio. Percebeu que já tinha ficado com Hélio por trinta anos além da conta.
* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
Hélio e Hérica foram feitos um para o outro. Hélio levou anos para se convencer disso. Conheceram-se na pós-graduação de cinema. Hérica ainda namorava o terceiro namorado quando iniciou o curso. Hélio era virgem. Virgem de tudo: boca, sexo e experiência de vida.
Ele passou trinta anos sem ter uma única namorada. Só teve decepções amorosas. Amores platônicos. Viu primos, amigos e irmã se casarem e terem filhos. Culpavam-no de nunca sair de casa e nem freqüentar danceterias. Como se fosse fácil conquistar uma mulher em uma boate. Odiava o ambiente escuro, piscante e barulhento das discotecas. Ele não se sentia obrigado a freqüentar isso só para conquistar alguém.
Também o culpavam pela sua aparência física desleixada. Mesmo assim, Hélio não tinha nenhuma vontade de se esforçar para ser vaidoso. Nunca deixava de tomar banho, mas não queria ter mania de limpeza. Passava desodorante, mas ele vencia rapidamente por causa do calor. A barba só fazia de quinze em quinze dias ou, nos tempos da faculdade, de três em três. Tinha horror a espremer espinhas. Doía muito.
Também nunca trabalhara na vida. Era sustentado pelo pai pão-duro, mas não tinha coragem de procurar um emprego. Hélio era um medroso. A pós-graduação era a chance de fazer uma ocupação para a sua família não dizer que ele era vagabundo. Sua única oportunidade de fazer amigos e... namorar. Se tivesse sorte, conseguir um emprego.
O novo curso era a sua décima-terceira tentativa de alcançar os seus objetivos. Das anteriores, os amigos não deixaram contatos ou o desprezaram. Inclusive as moças. Depois de seis meses, conheceu melhor os novos amigos. Inclusive Hérica, que, aliás, foi a última com ele fez amizade. Ela parecia ser a mais antipática. Era a única que morava na zona sul do Rio, onde ficava a faculdade. Ah! Claro! Hélio era suburbano de Olaria.
Um dia, por acaso, Hélio foi a única companhia de Hérica para o almoço de um sábado de aula. Era antevéspera de feriado e os amigos mais próximos de ambos haviam faltado. Conversaram bastante. Hérica falou de sua experiência profissional, do término do seu namoro. Hélio de sua vida frustrada e imatura. A conversa esquentou. Hélio e Hérica trocaram selos.
Na aula seguinte, quinze dias depois, com a turma novamente cheia e os colegas mais próximos de ambos presentes, Hélio já estava preparado para um tratamento distante por parte de Hérica. Já se conformava com a frieza natural dela. Estava enganado.
Hérica lhe procurou e o convidou para se sentar perto dela. No intervalo para o café, não se desgrudou dele. Uma outra colega, mais íntima, sentiu ciúmes. Não que Hélio não quisesse a companhia de Hérica, mas ele ficou com medo de decepcioná-la. Contou-lhe todos os seus defeitos, como se estivesse a preparando para o pior.
— Deixa disso, Hélio! Para de bobagem! Eu confio em você! Eu estou apaixonada! Confessou Hérica.
— Eu também estou! Mas não acredito que o namoro vá para frente.
— Eu acredito! Quer apostar?
— Quero! Não vai durar uma semana.
— Pessimista! Bobo! Eu aposto vinte anos.
— E você é otimista demais! Duvido que vá me agüentar durante esse tempo todo. Eu sou preguiçoso, relaxado, desatento e enrolado. Em compensação, sou fiel, simpático, honesto e sincero.
— Eu sei. Mas se fosse outra mulher, já teria fugido com tudo de ruim que você me falou de si próprio.
— Não é uma propaganda negativa. É uma precaução. Quero o bem das pessoas. Não quero que se arrependa depois.
— Eu sei, eu sei.
— E se você se mudar para São Paulo?
— Eu não vou me mudar. Se eu mudar você vai comigo.
— Então você quer namorar comigo, mesmo? Se a gente for pra cama e você terminar, não quero que fique me acusando de ter te usado só para te comer ou arrumar emprego. E eu não vou mudar meu jeito de ser. Não vou para São Paulo. Não freqüento discotecas. Só saio para ir a restaurantes, cinema, teatro e shopping. No dia dos namorados você me lembra de pedir presente e escolhe o que quer. Sou esquecido. Fiquei tanto tempo sem namora...
Hélio foi calado por um longo beijo de língua. Testemunhado por todos na faculdade. Ouviram-se aplausos.
Um mês depois, Hélio e Hérica foram para a cama. Hélio perdeu a virgindade. Mais duas semanas, Hélio já estava trabalhando na produtora de teatro do pai de Hérica. No ano seguinte se casaram. A pós já havia terminado. Passaram-se os anos. Tiveram dois filhos: uma menina (Heneida) e um menino (Heitor). Houve algumas crises de ciúmes dos dois lados. Quase romperam, mas faziam as pazes, sempre com lua-de-mel.
Hélio já tinha perdido a aposta de Hérica no início do namoro. Ela também. Chegaram aos cinqüenta anos de casamento, com quatro netos: dois de cada filho.
Hélio e Hérica foram feitos um para o outro. Hélio levou cinquenta anos para se convencer disso. Na semana seguinte, Hérica pediu o divórcio. Percebeu que já tinha ficado com Hélio por trinta anos além da conta.
* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
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