sexta-feira, 15 de julho de 2011



Fantasiar é preciso

A fantasia, ou seja, o ato de imaginar pessoas, mundos, coisas e situações que não existem, que são criadas exclusivamente pela nossa mente, se bem dosada (afinal, tudo o que é em excesso tende a ser nocivo) nos é sumamente útil. Diria, com a ressalva que fiz (quanto à dosagem), que chega a ser essencial e imprescindível. Queiram ou não, trata-se, entre outras coisas, de matéria-prima dos escritores, notadamente dos de ficção, embora seja, igualmente, explorada ad nausea pelos poetas.

Claro que é indispensável que tenhamos tirocínio para distinguir fantasia de realidade. Ou seja, compete-nos ter sempre em mente o que não passa de mero sonho, ou simples idealização, do que de fato acontece ou aconteceu a nós ou que testemunhamos ou ouvimos. Somos treinados, desde muito novos, para o exercício da fantasia. Afinal, o que são os brinquedos de criança se não isso? O que são as histórias infantis, que nos marcam a infância e influenciam até nossa conduta vida afora? Portanto, não sou contrário (e nem poderia ser) às fantasias. Mas, reitero, com as devidas ressalvas. Com a consciência de que aquilo que fantasiamos não existe, de fato, embora algumas dessas “projeções” possam, eventualmente, vir a existir. Nunca se sabe.

O mundo da fantasia, aquele do faz-de-conta, o dos nossos sonhos, tem as dimensões exatas dos nossos desejos. Difere – e me perdoem se estou sendo repetitivo – em muito, quando não em tudo, do real, onde temos que lutar pela sobrevivência, sem muito espaço (às vezes até sem nenhum) para correr atrás de abstrações. Preocupações imediatas nos desafiam, como conseguir um teto para nos cobrir a cabeça, o alimento que nos mantenha as forças, o acesso à educação e à cultura para que conservemos nosso tênue verniz de "civilização", o usufruto das conquistas da medicina para manter nossa saúde e prolongar nossa vida etc.

O que desejamos pode ser tanto a mola que nos impulsione às grandes realizações, quanto a fonte de toda a nossa infelicidade. E é muito difícil, senão impossível, filtrar o factível, o concretizável e o realizável do somente desejável. Alguns desejos exigem cumplicidade para que se realizem. Jamais uma única pessoa, de forma isolada, teria condições de realizá-los, dadas sua abrangência e complexidade.

Todavia, precisamos da fantasia para sobreviver enquanto seres pensantes. Necessitamos, mais do que admitimos, daquela que é a matéria-prima das artes e a consoladora mor dos homens. Ninguém resiste à realidade absoluta. É como olhar diretamente para o Sol. Ela nos cega e até nos mata. Há um poema de Raul Leoni que não me canso de citar em minhas crônicas, que diz, em determinado trecho: "O homem desperta e sai, cada alvorada,/para o acaso das coisas...E, à saída, /leva uma crença vaga, indefinida,/de achar o Ideal em alguma encruzilhada..." Alguns conseguem e abraçam-no ferozmente, para que não mais escape. Outros prosseguem nessa busca incansável, dia após dia, ano após ano, em vão. Mas a simples procura já lhes preenche a vida.

Por que o futuro sempre nos parece tão promissor, mesmo que nosso presente seja sombrio e repleto de dificuldades? Afinal, trata-se de uma contradição. Objetivamente, vivemos, a conta-gotas, cada hoje, que é o tempo em que temos condições de agir. O ontem é somente lembrança e não pode ser modificado e o amanhã, queiram ou não, é imensa incógnita.

Ocorre que o futuro é sempre movido a esperança. E não somente por ela, mas por considerável dose de fantasia. Contamos que, nele, as circunstâncias eventualmente desfavoráveis atuais, haverão de se reverter e se modificar para melhor, mesmo que pareça (e seja) improvável. O que fazemos, na verdade, é dar asas à fantasia que, como sabemos, tudo pode, mas (infelizmente) apenas no plano abstrato. No terreno do concreto... Todavia, ela é nossa grande consoladora. Alimenta nossas esperanças. É antídoto para o desespero. Na dose certa, portanto, é benigna, quando não essencial. O antropólogo italiano Paulo Mantegazza explica a razão desse comportamento, ao escrever: “O futuro é sempre belo, porque viaja na barquinha da esperança, cujas velas dilata aquela brisa inebriante, que é a fantasia”. E como ela inebria!

Podemos distinguir, nitidamente, no mundo, dois grandes grupos de pessoas, com suas múltiplas, quiçá infinitas variantes: o dos que se dizem "realistas" e o daqueles que se consideram "idealistas". Ambos os conceitos, destaque-se, são ambíguos. Ninguém se enquadra, de forma rigorosa e absoluta, em nenhuma das duas classificações. Todos temos, em proporções diversas, uma mescla de idealismo e de realismo.

Afinal, como perguntei inúmeras vezes nestas reflexões diárias, o que é a realidade? O que é fantasia? As coisas são, mesmo, o que aparentam ser? Não somos iludidos pela precariedade dos nossos sentidos e pela nossa pequenez, em um universo de dimensões aparentemente infinitas? Certamente que sim! O poeta T. S. Elliot chega a afirmar que "o gênero humano são suporta a realidade" (supondo, é claro, que seja mesmo possível chegar a ela). Precisamos de sonhos, de fantasias, de ideais para dar sentido e razão à nossa vida.

Auguste Kekulé, o célebre químico e professor alemão, recomendou, em 1890, aos seus alunos: “Vocês devem aprender a sonhar. Então, talvez descubram a verdade”. Ou seja, recomendou-lhes que recorressem, amiúde, à fantasia. E isto, ou seja, explorar o mundo dos sonhos e expressar o que “viram”, na linguagem mágica dos anjos, os poetas sabem, e de sobejo. Por isso, antecipam o futuro. E o fazem com mais graça e mais beleza (e, claro, com maior verdade), do que furibundos e enlouquecidos profetas, a nos ameaçarem com as mais terríveis desgraças e provações. Já os poetas abrem-nos as portas do Paraíso para que, pelo menos em sonho, possamos usufruir das suas delícias. Por isso...reinventam a vida..., uma vida com charme, graça e glamour.

Como todo sujeito normal, tenho, também, muitas, diversas, inúmeras, possivelmente infinitas fantasias. Sonho e sonho demais. Sonho com um mundo de harmonia, paz e felicidade, em que haja absoluta igualdade de direitos e deveres entre as pessoas. Sonho com um paraíso na Terra em que as contradições que nos dividem e desumanizam hajam sido superadas. Sonho com o dia em que não existam mais excluídos e nem exclusores, oprimidos e opressores, poderosos e humildes. Sonho com um mundo que prescinda de leis, governos, exércitos e tribunais, em que todos conheçam suas obrigações, sem necessidade de serem fiscalizados.

Meus sonhos avançam na proporção das minhas fantasias. Sonho com um mundo em que o amor sem limites seja a única Constituição dos povos, irmanados em um só ideal, sem fronteiras e separações. Sonho com uma sociedade irmanada e una em que estes versos do poeta Thiago de Mello, no poema “Os Estatutos do Homem”, sejam mais do que mera poesia: “O homem/não precisará nunca mais/duvidar do homem/que o homem confiará no homem/como a palavra confia no vento/como o vento confia no mar/como o ar confia no campo azul do céu...”

Boa leitura.

O Editor.

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