Uma carta de Julio Cortázar
* Por Luiz Carlos Monteiro
No extenso artigo Misteriosa entrega e mudança de si mesmo (Piauí, nº 58, jul. 2011, pp. 60-70), Davi Arrigucci Jr. apresenta uma pequena série de cartas escritas por Julio Cortázar ao seu amigo o poeta e pintor Eduardo Jonquières. A correspondência, com quase 130 cartas, ainda é inédita em português, e as cartas presentes no artigo foram traduzidas por Josely Vianna Baptista. Na carta publicada abaixo, Cortázar faz um breve comentário sobre Avalovara, de Osman Lins. E arremata com referências elogiosas à obra de Clarice Lispector e do próprio Osman.
Manágua,
24 de fevereiro de 1983
Querido Eduardo:
Pode ser que esta carta chegue até você depois de meu regresso a Paris, considerando que o correio é muito lento nestas latitudes; em todo caso, vou enviá-la para agradecer a sua, que me alegrou receber aqui. Como em viagens anteriores, Tomasello [Pintor e escultor argentino] tratou de me reenviar a correspondência e, de quebra, dar uma olhada no apartamento vazio há tanto tempo. Volto no dia 10 de março, depois de viajar para o México daqui, via Havana.
Vou lhe falar pouco de mim, estou tão desolado que tenho dificuldade em me reconhecer toda vez que acordo. [Carol Dunlop, a última esposa de Cortázar, falecera em 2 de novembro de 1982.] Só o trabalho vem um pouco em minha ajuda, que não me faltou na Nicarágua. Entre outras coisas, esses loucos tão queridos decidiram me homenagear com a Ordem de Ruben Darío, o que me emocionou muito porque é a primeira vez que a concedem a um estrangeiro. Tive de preparar um discurso e ser protagonista de uma dessas cerimônias que a gente vê tantas vezes no cinema ou na televisão: mas, neste caso, havia tanto carinho por parte dos dirigentes e do público que o lado protocolar não me incomodou nem um pouco. Deram-me uma fita com a gravação do ato e dos discursos (Sergio Ramírez leu um que reivindica a personalidade inteira de Darío, não somente os cisnes e o modernismo); se quiser podemos passá-la em Paris na casa de alguém que tenha o aparelho de vídeo, e você poderá vislumbrar uma das facetas deste país tão ameaçado, tão pobre e tão amável.
Afora isso, estive em expedições fronteiriças que me deixaram fraco e destroçado por mosquitos e outros insetos com uma clara vocação contrarrevolucionária. Tentando descansar dessa aventura, fui com os Flakoll a Corn Island, um pequeno paraíso à base de coqueiros e lagostas, a uma hora e meia de teco-teco de Manágua, na costa atlântica. E justamente lá eu tive uma nova cólica renal, desta vez de matar, que me deixou só pele e osso pelas dores, vômitos e pedrinhas por fim expelidas. Não estou nada bem nessa ida para o México, e na volta consultarei Elmaleh para ver como dar a volta por cima. O que mais me custa é lutar contra uma espécie de atonia ou de indiferença que nunca fez parte de minha personalidade; mas hoje em dia a química sabe somo injetar-nos ao menos um grau normal de vitalidade.]
Alegra-me saber que você gostou tanto de Avalovara, pois ainda que eu não me lembre dele em detalhes, ficou em mim como uma grande experiência de leitura. Coisa como a imagem de “Cecília, rodeada de leões”, perduram em minha má memória destes tempos. Às vezes penso que o que o li de mais forte nos últimos dez anos é a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Osman Lins; dá vontade, quase, de me aventurar ao português em busca de outras coisas que talvez existam.
Assim que eu voltar nos vemos. Um abraço bem forte,
Julio
* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com
* Por Luiz Carlos Monteiro
No extenso artigo Misteriosa entrega e mudança de si mesmo (Piauí, nº 58, jul. 2011, pp. 60-70), Davi Arrigucci Jr. apresenta uma pequena série de cartas escritas por Julio Cortázar ao seu amigo o poeta e pintor Eduardo Jonquières. A correspondência, com quase 130 cartas, ainda é inédita em português, e as cartas presentes no artigo foram traduzidas por Josely Vianna Baptista. Na carta publicada abaixo, Cortázar faz um breve comentário sobre Avalovara, de Osman Lins. E arremata com referências elogiosas à obra de Clarice Lispector e do próprio Osman.
Manágua,
24 de fevereiro de 1983
Querido Eduardo:
Pode ser que esta carta chegue até você depois de meu regresso a Paris, considerando que o correio é muito lento nestas latitudes; em todo caso, vou enviá-la para agradecer a sua, que me alegrou receber aqui. Como em viagens anteriores, Tomasello [Pintor e escultor argentino] tratou de me reenviar a correspondência e, de quebra, dar uma olhada no apartamento vazio há tanto tempo. Volto no dia 10 de março, depois de viajar para o México daqui, via Havana.
Vou lhe falar pouco de mim, estou tão desolado que tenho dificuldade em me reconhecer toda vez que acordo. [Carol Dunlop, a última esposa de Cortázar, falecera em 2 de novembro de 1982.] Só o trabalho vem um pouco em minha ajuda, que não me faltou na Nicarágua. Entre outras coisas, esses loucos tão queridos decidiram me homenagear com a Ordem de Ruben Darío, o que me emocionou muito porque é a primeira vez que a concedem a um estrangeiro. Tive de preparar um discurso e ser protagonista de uma dessas cerimônias que a gente vê tantas vezes no cinema ou na televisão: mas, neste caso, havia tanto carinho por parte dos dirigentes e do público que o lado protocolar não me incomodou nem um pouco. Deram-me uma fita com a gravação do ato e dos discursos (Sergio Ramírez leu um que reivindica a personalidade inteira de Darío, não somente os cisnes e o modernismo); se quiser podemos passá-la em Paris na casa de alguém que tenha o aparelho de vídeo, e você poderá vislumbrar uma das facetas deste país tão ameaçado, tão pobre e tão amável.
Afora isso, estive em expedições fronteiriças que me deixaram fraco e destroçado por mosquitos e outros insetos com uma clara vocação contrarrevolucionária. Tentando descansar dessa aventura, fui com os Flakoll a Corn Island, um pequeno paraíso à base de coqueiros e lagostas, a uma hora e meia de teco-teco de Manágua, na costa atlântica. E justamente lá eu tive uma nova cólica renal, desta vez de matar, que me deixou só pele e osso pelas dores, vômitos e pedrinhas por fim expelidas. Não estou nada bem nessa ida para o México, e na volta consultarei Elmaleh para ver como dar a volta por cima. O que mais me custa é lutar contra uma espécie de atonia ou de indiferença que nunca fez parte de minha personalidade; mas hoje em dia a química sabe somo injetar-nos ao menos um grau normal de vitalidade.]
Alegra-me saber que você gostou tanto de Avalovara, pois ainda que eu não me lembre dele em detalhes, ficou em mim como uma grande experiência de leitura. Coisa como a imagem de “Cecília, rodeada de leões”, perduram em minha má memória destes tempos. Às vezes penso que o que o li de mais forte nos últimos dez anos é a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Osman Lins; dá vontade, quase, de me aventurar ao português em busca de outras coisas que talvez existam.
Assim que eu voltar nos vemos. Um abraço bem forte,
Julio
* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com
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