Falta de intercâmbio
A falta de intercâmbio entre escritores brasileiros e os de outros países de língua portuguesa é uma deprimente realidade (salvo raras exceções), em detrimento dos leitores de ambas as partes. Conhecemos, no Brasil, mais autores que escrevem em inglês, francês, alemão ou espanhol do q ue os que se expressam neste magnífico idioma de Camões. Por que? Sabe-se lá! Essa falha, provavelmente, deve-se tanto a editoras dos dois lados, quanto aos próprios escritores.
De uns tempos para cá, graças aos recursos da internet, passei a ler mais obras dos nossos talentosos patrícios. Não me refiro àqueles clássicos, que lemos desde meninos, como Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano e Fernando Pessoa, entre outros. Venho lendo, (e gostando, claro), aqueles autores que os leitores portugueses estão lendo também. Minha leitura mais recente é a do poeta Eugênio de Andrade, de imenso prestígio em Portugal (comparável, quem sabe, ao de um Mário Quintana, no Brasil) e que raras vezes vi ser citado por aqui.
A obra desse escritor é das mais respeitáveis. Li, até agora, apenas dois dos seus livros, mas fiquei encantado com a sua arte de “poetar” (e perdoem-me por recorrer, mais uma vez, em minhas reflexões, a esse neologismo). O pitoresco é que Eugênio de Andrade sequer é seu nome de batismo, mas pseudônimo que adotou e se deu bem. Esse poeta, premiadíssimo em Portugal, chamava-se José Fontinhas. E por que essa referência no passado? Porque ele já morreu, em 13 de junho de 2005.
Sua obra poética ascende às dezenas, sendo que seu primeiro livro de poesias foi “Narciso”. A ele sucederam-se “Adolescente”, “As mãos e os frutos”, “Os amantes sem dinheiro”, “As palavras interditas”, “Escrita da terra” e “Matéria solar”, entre outros tantos e tantos títulos, que por si sós rescendem a pura poesia. Publicou, também, alguma prosa, inclusive literatura infantil, como “História da égua branca” e “Aquela nuvem e as outras”. Mas é sua obra poética, classificada por José Saramago como “uma poesia de corpo a que se chega mediante uma depuração contínua”, que me encanta. A mim e a milhões de leitores portugueses.
Eugênio de Andrade tinha horror à chamada “vida social”. Preferia ficar distante das badalações e dos holofotes da imprensa. Alguns chegaram a compará-lo, nesse aspecto, a J. D. Salinger. Não chegava a tanto. Participou, mesmo que a contragosto, de várias cerimônias e sempre se mostrou afável e cordato com os admiradores, os colegas de letras e a imprensa. Isso não quer dizer que gostasse de exposições públicas. Gostar, não gostava, até por questão de temperamento. Mas nem por isso se fazia de difícil.
Num de seus textos em prosa, pincei este desabafo de Eugênio de Andrade: “Eu nem sequer gosto de escrever. Acontece-me às vezes estar tão desesperado que me refugio no papel como quem se esconde para chorar. E o mais estranho é arrancar da minha angústia palavras de profunda reconciliação com a vida”.
Outra declaração dele? Que tal esta?: “É possível que só as árvores tenham raízes, mas o poeta sempre se alimentou de utopias. Deixe-me pois pensar que o homem ainda tem possibilidades de se tornar humano”. Por essas e outras é que gosto tanto dos poetas. São os únicos a expressarem as mais cruas, incômodas e às vezes até escabrosas verdades com tanta graça e beleza!
Se você não leu nada de Eugênio de Andrade, leia. Não irá se arrepender. Se conseguir encontrar algum dos seus livros, compre-o e “devore-o”, saboreando-o palavra por palavra. Caso contrário, leia seus poemas na internet que, felizmente, já os tem em boa quantidade. Como este, por exemplo, que reproduzo, a título de amostra:
A falta de intercâmbio entre escritores brasileiros e os de outros países de língua portuguesa é uma deprimente realidade (salvo raras exceções), em detrimento dos leitores de ambas as partes. Conhecemos, no Brasil, mais autores que escrevem em inglês, francês, alemão ou espanhol do q ue os que se expressam neste magnífico idioma de Camões. Por que? Sabe-se lá! Essa falha, provavelmente, deve-se tanto a editoras dos dois lados, quanto aos próprios escritores.
De uns tempos para cá, graças aos recursos da internet, passei a ler mais obras dos nossos talentosos patrícios. Não me refiro àqueles clássicos, que lemos desde meninos, como Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano e Fernando Pessoa, entre outros. Venho lendo, (e gostando, claro), aqueles autores que os leitores portugueses estão lendo também. Minha leitura mais recente é a do poeta Eugênio de Andrade, de imenso prestígio em Portugal (comparável, quem sabe, ao de um Mário Quintana, no Brasil) e que raras vezes vi ser citado por aqui.
A obra desse escritor é das mais respeitáveis. Li, até agora, apenas dois dos seus livros, mas fiquei encantado com a sua arte de “poetar” (e perdoem-me por recorrer, mais uma vez, em minhas reflexões, a esse neologismo). O pitoresco é que Eugênio de Andrade sequer é seu nome de batismo, mas pseudônimo que adotou e se deu bem. Esse poeta, premiadíssimo em Portugal, chamava-se José Fontinhas. E por que essa referência no passado? Porque ele já morreu, em 13 de junho de 2005.
Sua obra poética ascende às dezenas, sendo que seu primeiro livro de poesias foi “Narciso”. A ele sucederam-se “Adolescente”, “As mãos e os frutos”, “Os amantes sem dinheiro”, “As palavras interditas”, “Escrita da terra” e “Matéria solar”, entre outros tantos e tantos títulos, que por si sós rescendem a pura poesia. Publicou, também, alguma prosa, inclusive literatura infantil, como “História da égua branca” e “Aquela nuvem e as outras”. Mas é sua obra poética, classificada por José Saramago como “uma poesia de corpo a que se chega mediante uma depuração contínua”, que me encanta. A mim e a milhões de leitores portugueses.
Eugênio de Andrade tinha horror à chamada “vida social”. Preferia ficar distante das badalações e dos holofotes da imprensa. Alguns chegaram a compará-lo, nesse aspecto, a J. D. Salinger. Não chegava a tanto. Participou, mesmo que a contragosto, de várias cerimônias e sempre se mostrou afável e cordato com os admiradores, os colegas de letras e a imprensa. Isso não quer dizer que gostasse de exposições públicas. Gostar, não gostava, até por questão de temperamento. Mas nem por isso se fazia de difícil.
Num de seus textos em prosa, pincei este desabafo de Eugênio de Andrade: “Eu nem sequer gosto de escrever. Acontece-me às vezes estar tão desesperado que me refugio no papel como quem se esconde para chorar. E o mais estranho é arrancar da minha angústia palavras de profunda reconciliação com a vida”.
Outra declaração dele? Que tal esta?: “É possível que só as árvores tenham raízes, mas o poeta sempre se alimentou de utopias. Deixe-me pois pensar que o homem ainda tem possibilidades de se tornar humano”. Por essas e outras é que gosto tanto dos poetas. São os únicos a expressarem as mais cruas, incômodas e às vezes até escabrosas verdades com tanta graça e beleza!
Se você não leu nada de Eugênio de Andrade, leia. Não irá se arrepender. Se conseguir encontrar algum dos seus livros, compre-o e “devore-o”, saboreando-o palavra por palavra. Caso contrário, leia seus poemas na internet que, felizmente, já os tem em boa quantidade. Como este, por exemplo, que reproduzo, a título de amostra:
Havia uma palavra
Havia
uma palavra
no escuro.
Minúscula.Ignorada.
Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.
Do fundo do tempo,
martelava.
contra o muro.
Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.
de Matéria Solar
uma palavra
no escuro.
Minúscula.Ignorada.
Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.
Do fundo do tempo,
martelava.
contra o muro.
Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.
de Matéria Solar
Gostaram? Eu também gostei. E essa é apenas pequena amostragem da sua refinada arte de poetar. A vontade que tenho é a de reproduzir muitos outros poemas, dezenas, centenas, milhares deles. Todavia, reproduzo os versos abaixo, até para encerrar, com chave de ouro, estas reflexões de hoje:
Algumas Reflexões Sobre a Mulher
Elas são as mães:
rompem do inferno, furam a treva,
arrastando
os seus mantos na poeira das estrelas.
Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do pão.
Na vulva sombria
é onde fazem o lume:
ali têm casa.
Em segredo, escondem
o latir lancinante dos seus cães.
Nos olhos, o relâmpago
negro do frio.
Longamente bebem
o silencio
nas próprias mãos.
O olhar
desafia as aves:
o seu voo é mais fundo.
Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.
Despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.
É quando dançam que todos os caminhos
levam ao mar.
São elas que fabricam o mel,
o aroma do luar,
o branco da rosa.
Quando o galo canta
Desprendem-se
para serem orvalho.
Boa leitura.
O Editor.
rompem do inferno, furam a treva,
arrastando
os seus mantos na poeira das estrelas.
Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do pão.
Na vulva sombria
é onde fazem o lume:
ali têm casa.
Em segredo, escondem
o latir lancinante dos seus cães.
Nos olhos, o relâmpago
negro do frio.
Longamente bebem
o silencio
nas próprias mãos.
O olhar
desafia as aves:
o seu voo é mais fundo.
Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.
Despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.
É quando dançam que todos os caminhos
levam ao mar.
São elas que fabricam o mel,
o aroma do luar,
o branco da rosa.
Quando o galo canta
Desprendem-se
para serem orvalho.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Tão belo o último poema que dá vontade de ser mulher para fazer tudo quanto o poeta garante que se possa.
ResponderExcluirDe fato. Mara, trata-se de um poeta muito bom, de cuja obra só fui tomar conhecimento recentemente. Obrigado pelo comentário.
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