O tempo, esse amigo nem sempre favorável
• Por Mara Narciso
• Por Mara Narciso
Na festa da escola, as mães prestigiavam seus pequenos de dez anos. Não tinham mais de 30 anos de idade. A mãe de Ana já passou dos 46. Sua colega Maria perguntou quantos anos tinha a sua mãe, mas ela disse não saber. Naquela família, não se comemoravam os aniversários, não se falavam em idade. Havia uma negativa sobre a passagem do tempo. A tia de Ana, que não tinha se casado, guardava a idade como um bem secreto, e outra se casou já bem idosa. Estranhamente, naquela casa não era prática pintar os cabelos, com exceções.
Na família de Maria os costumes eram outros. O aniversário do avô era muito comentado e comemorado. Dias antes já se falava sobre a festa e a idade que ele faria. Era comum todos saberem o dia do aniversário um do outro, assim como os anos que estariam completando. Quando, em 1967, um tio-avô de Maria fez 70 anos, houve uma monumental comemoração. Ninguém queria ficar velho, mas todos queriam viver. Então, o jeito era envelhecer.
Quando Maria fez 25 anos, uma tia lhe falou: “até aqui, a cada dia você ficava mais bonita, mas de agora em diante, a cada dia ficará mais feia.” Assustador? Exagero? Mero ponto de vista.
O avô de Ana morreu aos 95 anos. Maria, naquela época, morava na capital e não ficou sabendo dessa morte e nem da morte da avó, que ocorreu depois. Quando mencionava as mortes, anos passados, ninguém sabia dizer em que ano teriam ocorrido. Já na família de Maria os mortos nunca eram esquecidos. Suas passagens eram recordadas a cada ano. Na família de Ana, negar a idade ficou sem importância, desde que as doenças e até as mortes eram omitidas. Moléstias não são comentadas, mesmo quando é certa a possibilidade de morte. Há quem pense que tudo seja mentira e o doente viverá cem anos. Aos 60, pode-se pensar estar na metade da vida, sendo que o melhor está por vir. Não se pensa a velhice.
Na casa de Maria, a mãe lhe falava dos velhos de maneira negativa, em relação à aparência (rugas nos cotovelos e pescoço) e às restrições da falta de saúde. Não queria viver muito e dizia que pouca diferença se dava viver 68 ou 72 anos. Comentava que as suas tias, que morreram aos 40 anos na década de 1960, já eram velhíssimas. Viúvas usavam um vestido preto de luto fechado e eterno, faziam um coque no cabelo, e só iam à missa. Passavam na sua porta de cabeça baixa e de terço na mão, em direção a igreja. E como rezavam! Mas as sobrinhas dessas mulheres, e entre elas a mãe de Maria, todas queriam se aparentar mais jovens. As mulheres eram magras, faziam ginástica, pintavam os cabelos, e na quinta década faziam plástica de face total, algumas delas, mais de uma vez.
Embora na casa de Ana as pessoas escondessem a idade, e fingissem ser jovens, queriam fazer plásticas, mas não tinham coragem. Virou religião dizer que o importante é como a pessoa se sente: “Sinto-me jovem, então sou jovem!” Contraditoriamente, em todas as falas manifestavam desprezo pelos mais velhos, usando a palavra “velho” e “velharada” de maneira desrespeitosa. Então, fica claro que a negação da velhice vem do próprio preconceito, do não tolerar ser velho, ao mesmo tempo em que criticavam quem falasse na velhice no dia a dia, até para se acostumar com ela.
A discórdia de pontos de vista agravou-se quando Ana estava em desavenças conjugais e perguntou à Maria, o que achava de ela se separar e se caso o fizesse, se acharia outro marido. Usando da sinceridade que lhe é característica, Maria falou que se não achasse, por estar com mais de 40 anos, que pagasse por um. Não por supor que a amiga fosse incapaz, mas por acreditar, na época, ser difícil uma mulher de mais de 40 anos arrumar marido.
Os anos passaram e a cada descida de degrau, Maria comentava o fato, para desespero de Ana. A parceria que sempre rendeu ótimos frutos, na velhice já não rendia nada, além de imensas discussões sobre o tema. Até que houve um basta. O assunto foi vetado, não sem antes ficar decidido que cada uma ficasse com seu ponto de vista: Ana achando que o importante era ignorar a velhice, enquanto Maria achava melhor descer um degrau de cada vez. Ana não pensava no assunto, mas ficava imobilizada, criticando as invenções da outra, enquanto Maria tudo fazia para preencher a vida.
Maria, a que se abraçou com a velhice aos 25 anos, aceitou os vincos na pele. Acompanhou cada um, não teve surpresas, e continuou construindo coisas. Ana está amarga e revoltada. Não diz, mas não aceita a velhice. Para ela o tempo passou, mas não fez o que queria. Esconde que se aposentou, finge que a face está lisa, e afirma que não sente que o tempo passou. Mesmo que o espelho e os outros digam outra coisa.
Ao anoitecer da vida, (qual será essa idade?) o navio não tem a beleza e a imponência de outras épocas, mas a quilha aprumada atravessará novos mares com as experiências de velhas travessias.
*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-
Na família de Maria os costumes eram outros. O aniversário do avô era muito comentado e comemorado. Dias antes já se falava sobre a festa e a idade que ele faria. Era comum todos saberem o dia do aniversário um do outro, assim como os anos que estariam completando. Quando, em 1967, um tio-avô de Maria fez 70 anos, houve uma monumental comemoração. Ninguém queria ficar velho, mas todos queriam viver. Então, o jeito era envelhecer.
Quando Maria fez 25 anos, uma tia lhe falou: “até aqui, a cada dia você ficava mais bonita, mas de agora em diante, a cada dia ficará mais feia.” Assustador? Exagero? Mero ponto de vista.
O avô de Ana morreu aos 95 anos. Maria, naquela época, morava na capital e não ficou sabendo dessa morte e nem da morte da avó, que ocorreu depois. Quando mencionava as mortes, anos passados, ninguém sabia dizer em que ano teriam ocorrido. Já na família de Maria os mortos nunca eram esquecidos. Suas passagens eram recordadas a cada ano. Na família de Ana, negar a idade ficou sem importância, desde que as doenças e até as mortes eram omitidas. Moléstias não são comentadas, mesmo quando é certa a possibilidade de morte. Há quem pense que tudo seja mentira e o doente viverá cem anos. Aos 60, pode-se pensar estar na metade da vida, sendo que o melhor está por vir. Não se pensa a velhice.
Na casa de Maria, a mãe lhe falava dos velhos de maneira negativa, em relação à aparência (rugas nos cotovelos e pescoço) e às restrições da falta de saúde. Não queria viver muito e dizia que pouca diferença se dava viver 68 ou 72 anos. Comentava que as suas tias, que morreram aos 40 anos na década de 1960, já eram velhíssimas. Viúvas usavam um vestido preto de luto fechado e eterno, faziam um coque no cabelo, e só iam à missa. Passavam na sua porta de cabeça baixa e de terço na mão, em direção a igreja. E como rezavam! Mas as sobrinhas dessas mulheres, e entre elas a mãe de Maria, todas queriam se aparentar mais jovens. As mulheres eram magras, faziam ginástica, pintavam os cabelos, e na quinta década faziam plástica de face total, algumas delas, mais de uma vez.
Embora na casa de Ana as pessoas escondessem a idade, e fingissem ser jovens, queriam fazer plásticas, mas não tinham coragem. Virou religião dizer que o importante é como a pessoa se sente: “Sinto-me jovem, então sou jovem!” Contraditoriamente, em todas as falas manifestavam desprezo pelos mais velhos, usando a palavra “velho” e “velharada” de maneira desrespeitosa. Então, fica claro que a negação da velhice vem do próprio preconceito, do não tolerar ser velho, ao mesmo tempo em que criticavam quem falasse na velhice no dia a dia, até para se acostumar com ela.
A discórdia de pontos de vista agravou-se quando Ana estava em desavenças conjugais e perguntou à Maria, o que achava de ela se separar e se caso o fizesse, se acharia outro marido. Usando da sinceridade que lhe é característica, Maria falou que se não achasse, por estar com mais de 40 anos, que pagasse por um. Não por supor que a amiga fosse incapaz, mas por acreditar, na época, ser difícil uma mulher de mais de 40 anos arrumar marido.
Os anos passaram e a cada descida de degrau, Maria comentava o fato, para desespero de Ana. A parceria que sempre rendeu ótimos frutos, na velhice já não rendia nada, além de imensas discussões sobre o tema. Até que houve um basta. O assunto foi vetado, não sem antes ficar decidido que cada uma ficasse com seu ponto de vista: Ana achando que o importante era ignorar a velhice, enquanto Maria achava melhor descer um degrau de cada vez. Ana não pensava no assunto, mas ficava imobilizada, criticando as invenções da outra, enquanto Maria tudo fazia para preencher a vida.
Maria, a que se abraçou com a velhice aos 25 anos, aceitou os vincos na pele. Acompanhou cada um, não teve surpresas, e continuou construindo coisas. Ana está amarga e revoltada. Não diz, mas não aceita a velhice. Para ela o tempo passou, mas não fez o que queria. Esconde que se aposentou, finge que a face está lisa, e afirma que não sente que o tempo passou. Mesmo que o espelho e os outros digam outra coisa.
Ao anoitecer da vida, (qual será essa idade?) o navio não tem a beleza e a imponência de outras épocas, mas a quilha aprumada atravessará novos mares com as experiências de velhas travessias.
*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-
Parafraseando o título, eu diria: o tempo, esse recurso não renovável! Tempo que ensina e faz a gente desaprender. Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos - como disse Caetano. Muito interessantes as diferentes perspectivas, muito bem alinhavadas no seu texto, sobre o inevitável passar das horas. Excelente o último parágrafo. Parabéns, Mara.
ResponderExcluirAlgumas pessoas eu adoraria ver de cabelos brancos
ResponderExcluircom certeza estaria a seu lado envelhecendo juntas.
Não condeno quem teme a velhice tornando-a tabu e não menosprezo quem disfarça a idade com injeções milagrosas.
Ótimo texto Mara.
Abração
A Mara não conseguiu postar comentário, mas solicitou que eu postasse essas respostas ao Marcelo e à Núbia:
ResponderExcluirMarcelo, fiquei encantada com o poema que acabou fazendo para o meu texto. Envelhecer, cada qual tem sua maneira. Coloquei dois tipos e cada um vai acrescentando outros jeitos. Obrigada, Marcelo!
Núbia, entendo seu ponto de vista. Gostaríamos de ver gente que já morreu, com saúde e ao nosso lado e no entanto já partiram. Pena! Agradecida por comentar.