segunda-feira, 18 de julho de 2011







O sapo que queria ser príncipe


* Por Rubem Alves

Memórias: Faz tempo que estou escrevendo as minhas memórias. Memórias são pedaços da gente transformados em palavras. Relembro o dito pelo Murilo Mendes no seu livrinho também de memórias A Idade do Serrote: “Quando eu não era antropófago — quando eu não devorava livros... Pois os livros não são feitos com o sangue e a carne daqueles que os escrevem?”
Escrever e ler é participar de um ritual eucarístico — porque é isso mesmo que é a eucaristia, um ritual antropofágico, em que o pão e o vinho são transformados em carne e sangue. E qual é a vantagem de participar do ritual antropofágico? O que é que se ganha? O que se ganha é que o sangue e o corpo do outro passa a viver dentro do nosso próprio corpo e o seu sangue passa a circular no nosso próprio sangue.
Eu sou um estranho cemitério. Digo estranho porque num cemitério de verdade enterram-se os mortos que, à medida que o tempo passa, vão ficando cada vez mais mortos, engolidos pela sepultura do esquecimento.
Mas o meu cemitério é diferente porque os mortos que estão nele enterrados ressuscitam todas as vezes que deles me lembro.
Não, não é bem assim. Porque do jeito como eu disse parece que é o meu ato de lembrar que os trás de volta à vida. Mas as memórias feitas com carne e sangue não esperam ser chamadas. Repentinamente, sem que estivéssemos nos lembrando delas, elas saem da sepultura do esquecimento em que se encontravam e se colocam diante da gente. E eu me lembro. É porque elas estão vivas que eu me lembro e não o contrário.
Quando eu era psicanalista tinha no meu consultório a reprodução de uma tela de Piero della Francesca: Jesus saindo do túmulo de pedra, radiante e belo e os guardas — cuja missão era precisamente impedir que ele voltasse ao mundo dos vivos — dormindo. Alguns clientes se espantavam que um psicanalista — os psicanalistas são famosos pelo seu ateísmo — tivesse um quadro religioso na parede do seu consultório. E me perguntavam: “O que significa esse quadro?” E eu respondia: “Esse quadro significa que enquanto os guardas do consciente estão dormindo a vida que estava enterrada no esquecimento ressurge...”
Escrevo minhas memórias para oferecer pedaços da minha vida àqueles que amo, àqueles que me amam. Trata-se de um ritual de imortalidade: mesmo depois de morto eu estarei vivo não só na memória mas na carne e no sangue dos que me comeram.
No primeiro livro de memórias, O Velho que Acordou Menino (Planeta) eu me servi menino. Coisas da minha infância que me fizeram rir e chorar. No segundo livro eu conto como foi que eu perdi o paraíso, saindo da pobreza de uma cidadezinha de Minas para os esplendores do Rio de Janeiro, quando eu conheci a solidão. Custou-me muito escolher o título. Depois de muitas indecisões escrevi O sapo que queria ser príncipe. No Rio de Janeiro virei sapo. Foi quando descobri a religião. A religião é o lugar dos milagres. Sapos se transformam em príncipes. Virei príncipe. E assim foi a minha vida até que, na tarde de um dia calmo, vagabundeando em Nova York, num vagão de metrô, eu conheci pela primeira vez o que era medo.
Bem que gostaria de contar mais. Mas meu espaço chegou ao fim. Agora estou começando a escrever as memórias de maturidade e velhice..
Paulo Freire: Cumprindo burocracias a reitoria da Unicamp encarregou-me de elaborar um parecer sobre Paulo Freire que, de alguma forma, avalizasse a sua contratação como docente da universidade. Exigência ridícula e absurda, dada a projeção e o prestígio do ilustre pedagogo. Foi isso que escrevi:
“O objetivo de um parecer, como a própria palavra o sugere, é dizer a alguém que supostamente nada ouviu e que, por isto mesmo, nada sabe, aquilo que parece ser, aos olhos do que fala ou escreve. Quem dá um parecer empresta os seus olhos e o seu discernimento a um outro que não viu e nem pôde meditar sobre a questão em pauta. Isto é necessário porque os problemas são muitos e os nossos olhos são apenas dois...
Há, entretanto, certas questões sobre as quais emitir um parecer é quase uma ofensa. Emitir um parecer sobre Nietzsche ou sobre Beethoven ou sobre Cecília Meireles? Para isto seria necessário que o signatário do documento fosse maior que eles e o seu nome mais conhecido e mais digno de confiança que aqueles sobre quem escreve...
Um parecer sobre Paulo Reglus Neves Freire.
O seu nome é conhecido em universidades através do mundo todo. Não o será aqui, na Unicamp? E será por isto que deverei acrescentar a minha assinatura (nome conhecido, doméstico) como avalista? Seus livros, não sei em quantas línguas estarão publicados. Imagino (e bem pode ser que eu esteja errado) que nenhum outro dos nossos docentes terá publicado tanto, em tantas línguas. As teses que já se escreveram sobre seu pensamento formam bibliografias de muitas páginas. E os artigos escritos sobre o seu pensamento e a sua prática educativa, se publicados, seriam livros.
O seu nome, por si só, sem pareceres domésticos que o avalizem, transita pelas universidades da América do Norte e da Europa. E quem quisesse acrescentar a este nome a sua própria “carta de apresentação” só faria papel ridículo.
Não. Não posso pressupor que este nome não seja conhecido na Unicamp. Isto seria ofender aqueles que compõem seus órgãos decisórios.
Por isso o meu parecer é uma recusa em dar um parecer. E nesta recusa vai, de forma implícita e explícita, o espanto de que eu devesse acrescentar o meu nome ao de Paulo Freire. Como se, sem o meu, ele não se sustentasse.
Mas ele se sustenta sozinho, Paulo Freire atingiu o ponto máximo que um educador pode atingir.
A questão é se desejamos tê-lo conosco. A questão é se ele deseja trabalhar ao nosso lado.
É bom dizer aos amigos:
— Paulo Freire é meu colega. Temos salas no mesmo corredor da Faculdade de Educação da Unicamp...
Era o que me cumpria dizer.”
Ele foi contratado.

* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador

Nenhum comentário:

Postar um comentário