Um dia qualquer
* Por Marco Albertim
Em frente à Cadeia Pública, pouco mais de uma dezena de pessoas se juntaram para ver. Os paralelepípedos amontoados, soltos, serviam para o apoio de pernas. Houve quem fez assento deles. A areia espalhada em montes de um metro, no máximo, fora pisoteada pelos moleques. Os operários da prefeitura foram dispensados do trabalho de empedrar a rua; senão que em definitivo, pelo menos naquele dia. Na calçada da Cadeia, em cima de quatro degraus de cimento, os soldados, pelo menos dez deles, conversavam segurando o fuzil; o cabo no chão, o cano para cima; alguns, troncudos, portavam-no com a grossa alça de couro sobre o ombro.
A porta da Cadeia, alta, grossa, com um formato cônico em cima, fora aberta dos dois lados, escancarando-se. Pintada de marrom escuro, mesmo contrariando o rito raivoso que se fazia à bandeira. Uma janela em cada um dos lados; uma gradeada, de onde os presos comuns, tirando proveito da curiosidade de quem os olhasse, pediam cigarros; outra, também gradeada, inda que com uma grossa janela de madeira, da mesma cor da porta; esta nunca se abria, posto que ali o cabo Mancurica, operando no telégrafo, informava o quartel sobre diligências e capturas da Polícia Militar.
O garoto Delbrando, quatorze anos, saíra de casa vestindo calça comprida; receara que, com calça curta, fosse mandado para casa por um soldado ajuizando-o incapaz de entender a prisão de camponeses desarmados, rostos submissos.
- Ele foi preso, tá entrando na cadeia! – informou o cabo Mancurica, pressionando o dedo médio no aparelho.
Do lado de fora, ninguém ouviu sua voz precisa sob o felpudo bigode. Nunca fora de incursões para a prisão de algum bêbado na feira ou no cabaré de Goiana, mas logo ganhou apelido por ser magro, curvado nas costas e gabar-se de não se juntar com “gente safada.”
Não fora ouvido, mas até Delbrando identificou o último preso a entrar, atrás de uma leva de camponeses.
É o Cabeleira! – disse alguém. O espanto de Delbrando cresceu.
Cabeleira, da mesma cor de todos os soldados, moreno tisnado; o cabelo descia sobre a cabeça feito fios amaciados, longos; talvez por isso não usasse chapéu, como a maioria dos camponeses do sindicato.
Quando todos entraram, Garrafinha, um soldado, segurou-o no braço; segurou-o na antessala, depois fez sinal para que seguisse. Ao cruzar o umbral do salão com enxovias dos dois lados, sentiu a dor nas costas; a pancada, simultânea ao estrondo do cepo de goiabeira, zurziu nos sentidos, revirou os olhos para dar conta de um negro enfiado na calça cáqui da farda; torso e peito nus. Nos olhos, as chispas do caçador que tem sob as botas a presa agoniada.
- Levanta, Cabeleira! – grita Garrafinha.
O homem levantou-se com os braços para cima, cruzados, para aparar o açoite seguinte.
- Tira a roupa! – insistiu Garrafinha.
Cabeleira, sem poder contorcer os braços para socorrer o espinhaço, despiu-se da camisa, da calça; no rosto, o ricto do penar na chama do inferno. Com o calção de chita desbotada, a costura em linhas feito tiras soltas, reduzira-se a um graveto no caminho dos homens; mais uma razão para ser moído.
No sindicato, Cabeleira não gritara para encorajar à ocupação dos engenhos. Mesmo se houvesse microfone na sala de paredes sem retratos, não o usaria. Sua voz era contida pelo silêncio respeitoso dos outros; entrando em juízos, perdendo-se nas duas janelas da frente, nas frestas das telhas sobre caibros e ripas.
Delbrando, ouvindo os gritos de Cabeleira, ajuizou-os como aos bodes do matadouro, pendurados em cordas, berrando a cada golpe do porrete. Cabeleira, cujo pente se misturava ao cabelo ao fim das reuniões, não deixara a barbicha crescer; não, para não parecer com um bode. No entanto...
A Cadeia, com sótão sob as telhas, não conteve os gritos de Cabeleira; deixou-os escapar pela porta da frente. Delbrando agoniou-se nas costas, na medula, no mesmo lugar onde Cabeleira recebera a primeira bordoada.
- Está sendo interrogado... – balbuciou com o mesmo dedo o cabo Mancurica.
Desceu a rua, Delbrando. Às cinco da tarde, a bruma flagrou a luz mortiça nas salas de casas juntas e paredes de reboco caído. Sentou-se na esquina atrás dos soldados com a metralhadora apontada para o sindicato; ficou um tempão ali. Deu tempo de ver Sinhazinha chegar, junto com a negra Severina, para distribuir bolachas com manteiga à tropa verde-oliva.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
Em frente à Cadeia Pública, pouco mais de uma dezena de pessoas se juntaram para ver. Os paralelepípedos amontoados, soltos, serviam para o apoio de pernas. Houve quem fez assento deles. A areia espalhada em montes de um metro, no máximo, fora pisoteada pelos moleques. Os operários da prefeitura foram dispensados do trabalho de empedrar a rua; senão que em definitivo, pelo menos naquele dia. Na calçada da Cadeia, em cima de quatro degraus de cimento, os soldados, pelo menos dez deles, conversavam segurando o fuzil; o cabo no chão, o cano para cima; alguns, troncudos, portavam-no com a grossa alça de couro sobre o ombro.
A porta da Cadeia, alta, grossa, com um formato cônico em cima, fora aberta dos dois lados, escancarando-se. Pintada de marrom escuro, mesmo contrariando o rito raivoso que se fazia à bandeira. Uma janela em cada um dos lados; uma gradeada, de onde os presos comuns, tirando proveito da curiosidade de quem os olhasse, pediam cigarros; outra, também gradeada, inda que com uma grossa janela de madeira, da mesma cor da porta; esta nunca se abria, posto que ali o cabo Mancurica, operando no telégrafo, informava o quartel sobre diligências e capturas da Polícia Militar.
O garoto Delbrando, quatorze anos, saíra de casa vestindo calça comprida; receara que, com calça curta, fosse mandado para casa por um soldado ajuizando-o incapaz de entender a prisão de camponeses desarmados, rostos submissos.
- Ele foi preso, tá entrando na cadeia! – informou o cabo Mancurica, pressionando o dedo médio no aparelho.
Do lado de fora, ninguém ouviu sua voz precisa sob o felpudo bigode. Nunca fora de incursões para a prisão de algum bêbado na feira ou no cabaré de Goiana, mas logo ganhou apelido por ser magro, curvado nas costas e gabar-se de não se juntar com “gente safada.”
Não fora ouvido, mas até Delbrando identificou o último preso a entrar, atrás de uma leva de camponeses.
É o Cabeleira! – disse alguém. O espanto de Delbrando cresceu.
Cabeleira, da mesma cor de todos os soldados, moreno tisnado; o cabelo descia sobre a cabeça feito fios amaciados, longos; talvez por isso não usasse chapéu, como a maioria dos camponeses do sindicato.
Quando todos entraram, Garrafinha, um soldado, segurou-o no braço; segurou-o na antessala, depois fez sinal para que seguisse. Ao cruzar o umbral do salão com enxovias dos dois lados, sentiu a dor nas costas; a pancada, simultânea ao estrondo do cepo de goiabeira, zurziu nos sentidos, revirou os olhos para dar conta de um negro enfiado na calça cáqui da farda; torso e peito nus. Nos olhos, as chispas do caçador que tem sob as botas a presa agoniada.
- Levanta, Cabeleira! – grita Garrafinha.
O homem levantou-se com os braços para cima, cruzados, para aparar o açoite seguinte.
- Tira a roupa! – insistiu Garrafinha.
Cabeleira, sem poder contorcer os braços para socorrer o espinhaço, despiu-se da camisa, da calça; no rosto, o ricto do penar na chama do inferno. Com o calção de chita desbotada, a costura em linhas feito tiras soltas, reduzira-se a um graveto no caminho dos homens; mais uma razão para ser moído.
No sindicato, Cabeleira não gritara para encorajar à ocupação dos engenhos. Mesmo se houvesse microfone na sala de paredes sem retratos, não o usaria. Sua voz era contida pelo silêncio respeitoso dos outros; entrando em juízos, perdendo-se nas duas janelas da frente, nas frestas das telhas sobre caibros e ripas.
Delbrando, ouvindo os gritos de Cabeleira, ajuizou-os como aos bodes do matadouro, pendurados em cordas, berrando a cada golpe do porrete. Cabeleira, cujo pente se misturava ao cabelo ao fim das reuniões, não deixara a barbicha crescer; não, para não parecer com um bode. No entanto...
A Cadeia, com sótão sob as telhas, não conteve os gritos de Cabeleira; deixou-os escapar pela porta da frente. Delbrando agoniou-se nas costas, na medula, no mesmo lugar onde Cabeleira recebera a primeira bordoada.
- Está sendo interrogado... – balbuciou com o mesmo dedo o cabo Mancurica.
Desceu a rua, Delbrando. Às cinco da tarde, a bruma flagrou a luz mortiça nas salas de casas juntas e paredes de reboco caído. Sentou-se na esquina atrás dos soldados com a metralhadora apontada para o sindicato; ficou um tempão ali. Deu tempo de ver Sinhazinha chegar, junto com a negra Severina, para distribuir bolachas com manteiga à tropa verde-oliva.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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