domingo, 17 de julho de 2011



Maldição ou privilégio?

A questão da importância do talento para se ter sucesso em qualquer atividade é muito controversa e polêmica. Há os que juram que sem ele é até impossível sequer cogitar, mesmo que remotamente, em êxito no que estivermos fazendo, seja lá o que for. Uns dizem que nascemos com essas aptidões naturais e que basta aplicá-las na atividade para a qual formos vocacionados para atingirmos a excelência em nossas obras. Outros, todavia, discordam, Garantem que sem aprimoramento, sem treino constante e diligente, o talento estaciona, estiola, murcha e morre.

Mas a questão que mais me intriga, notadamente em alguns escritores (e vários deles bem sucedidos), é o fato de muitos considerarem a vocação de que são dotados de “maldição”. Seria mesmo? Seria uma coisa tão ruim e nefasta e, pior, da qual a pessoa não poderia se livrar quando não mais a satisfizesse e quando melhor a aprouvesse? Discordo enfaticamente dessa posição. Considero o gosto pela literatura, e mais do que isso, o talento para exercê-la bem, com competência e proficiência, enorme privilégio. A maioria das pessoas não só não sabe tratar das grandes questões, como é incapaz até mesmo de se comunicar minimamente por escrito. Essa ignorância, sim, deve ser deplorada.

O escritor Thomas Mann, um dos clássicos da literatura alemã, escreveu no livro “Tonio Krueger – A morte em Veneza” (Boa Leitura Editora): “A literatura não é profissão alguma, e sim uma maldição...” Caso tenha se referido ao retorno econômico dessa atividade, não deixa de ter lá certa dose de razão. Há outras tantas muito mais rentáveis e menos exigentes do que o trato das letras, posto que nem sempre fascinantes. Não, pelo menos, do que essa maravilhosa aptidão de comunicar pensamentos e sentimentos, de relatar fatos, de gerar fantasias, de difundir conhecimentos etc. com este instrumento frágil e volátil, que é a palavra.

Ademais, ninguém obriga ninguém a fazer da literatura seu meio de vida. Quem abraça essa atividade fá-lo por amor, por convicção, por opção pessoal e nunca por obrigação. É fato que algumas pessoas nascem com talento maior para determinadas coisas do que outras. No entanto, se não desenvolvê-lo, se não estudar, não treinar, não exercitar essa aptidão, não for aplicado e autodisciplinado, esta não surtirá nenhum efeito.

O artista, em especial o poeta, desenvolve com anos de exercício a capacidade de explorar sutilmente o subconsciente à cata de emoções que lhe sirvam de matéria-prima para maravilhosas obras de arte. Sons, imagens, odores, sensações agradáveis ditadas pelos cinco sentidos, são transformados por esses criadores (que valorizam e dão nobreza à vida humana) em melodias, telas, esculturas, palavras que formam metáforas bem ajustadas e harmoniosas. Com o talento de que são dotados, nos transmitem suas emoções, às quais agregamos as nossas, ditadas por nossa própria experiência pessoal. Mas isso apenas será verdadeiro se vier a desenvolvê-lo. Reitero, se burilá-lo através do estudo, desenvolvê-lo, pelo treinamento e consolidá-lo, pelo exercício.

Uma das mais belas e profundas parábolas de Cristo fala justamente sobre a distribuição de talentos – no caso específico, o nome de uma moeda da época, mas que, em sentido metafórico, simboliza as aptidões naturais com que somos dotados (ou deixamos de ser). Quem recebeu a maior quantidade, o primeiro dos servidores, aplicou-a e dobrou-a. O segundo servo, que ganhou uma quantia mediana, igualmente fez bom uso desse capital e o multiplicou. Todavia, justo quem foi menos aquinhoado, não soube o que fazer com o patrimônio.

Enterrou seu talento e teve que devolver essa única moeda recebida, ficando sem nada. E ainda foi repreendido por sua falta de iniciativa. O mesmo ocorre no mundo. Os mais talentosos, em geral, têm autodisciplina para desenvolver novas habilidades. Os tacanhos preferem encolher-se e ficar reclamando das injustiças. E acabam por sumir, sem deixar pegadas. São esses que consideram sua vocação, posto que pequena, como maldição. Por que? Porque não sabem o que fazer com ela. Ou porque não entendem bem sua natureza e alcance, superestimam-na e, claro, se frustram.

O homem pode criar arte até com o próprio corpo, com sua vida, com sua experiência pessoal, embora esta pareça fútil, trivial e sem importância. Quem sugere esse caminho é Jorge Luís Borges. "Devemos fazer com que as circunstâncias miseráveis de nossa vida se tornem coisas eternas ou em vias de eternidade". Caso apliquemos na devida medida nosso talento nessa empreitada, encontramos satisfação que dinheiro algum paga. Nossas experiências pessoais, por mais corriqueiras que pareçam, podem ter grande importância para nossos companheiros "de aventura", para as pessoas do nosso tempo e, principalmente, para as gerações futuras. As mesmas fraquezas que detectamos em nós e que buscamos esconder dos outros, para não deslustrar a nossa "imagem", são as dos que nos rodeiam, que igualmente as escondem.

Só a arte tem o condão de nos revelar a genuína grandeza do ser humano (em termos potenciais), a transcendência da vida e a beleza em toda sua majestade e magnitude. Por meio dela, com a sua linguagem simbólica, realçada pelo talento, é que expressamos, sem enganos, dissimulações ou temores, os grandiosos ideais, individuais, e coletivos (os da humanidade), esquecidos no dia-a-dia. Aqueles mesmos que nos empolgaram um dia, na juventude, mas que, na luta feroz do cotidiano, pelo pão nosso de cada dia, na batalha inglória pela sobrevivência, deixamos, pouco a pouco, se esvair e se perder no meio do caminho.

Uma citação pitoresca, acerca do talento, notadamente para as artes, foi escrita por William Faulkner e enseja inúmeras interpretações. O romancista norte-americano escreveu: “Um artista é uma criatura guiada por demônios. Não sabe porque esses demônios o escolheram e geralmente está muito ocupado para indagar a respeito”. Prefiro esta outra constatação, a de John Irving, no livro “A prayer for Owen Meany”: “Se você tiver a sorte de encontrar um meio de vida de que goste, precisará ter a coragem para vivê-la”. É isso que entendo que seja a aplicação dos talentos, da parábola de Cristo, que tende a fazê-los render, se não economicamente, em outra instância, a que mais nos importa: em satisfação! O que é, afinal, a vocação para as artes (ou para qualquer outra atividade)? É maldição ou privilégio? Ora, ora, ora...

Boa leitura.

O Editor.




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Um comentário:

  1. Maldição e privilégio ao mesmo tempo, eu diria. Gostei da frase: "este instrumento frágil e volátil, que é a palavra". Não é fácil usá-la. E destacaria, até pelo fato de o estar lendo, o livro " O Amanuense Belmiro" do montes-clarense Cyro dos Anjos, publicado em 1937. O autor escreve suas notas, na forma de diário destacando a sua condição de funcionário público medíocre, algo insensato por viver num mundo de sonhos, e aposta que seu futuro livro será um fiasco. Resultado: foi para a Academia Brasileira de Letras. Maldição ou privilégio?

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