Mentira
consentida
* Por Pedro J.
Bondaczuk
A mentira é tida e havida como sério
desvio comportamental, certo? Não há o que contestar quanto a esta afirmação,
concordam?. O mentiroso compulsivo sofre, via de regra, sutis sanções sociais e
é alvo de chacotas e de incredulidade generalizada. É, principalmente,
considerado “pessoa não-confiável”, já que não é possível de se saber no que e
no quanto podemos ou não acreditar daquilo que diz.
E olhem que sequer estou me referindo
às conotações mais graves da mentira, que recebem as pomposas designações de “calúnia”, “injúria”
e “difamação”. Estas são (com toda a justiça, convenhamos) capituladas, nos
códigos penais de praticamente todos os países do mundo, como “crimes contra a
honra”.
Tudo, porém, é relativo na sociedade.
Há um tipo de mentira, por exemplo, que não somente é tolerado, mas é
consentido e até incentivado, por se considerar que se trata de um ato de
genuína “criatividade”.
Quem as conta com maestria, em
detalhes, inventando personagens, cenários, diálogos e situações (verossímeis
ou não) é considerado talentoso. E se for muito bom nesse mister, e tiver um
pouquinho de sorte, imortaliza seu nome na memória dos povos. É reverenciado,
estudado e imitado gerações afora. Pode, até, ganhar um Prêmio Nobel!!!
E quem é esse mentiroso sortudo, que
recebe prêmios em vez de castigos pelas mentiras que conta? É o escritor!!! Por
mais que me doa admitir (já que vivo, ou melhor, sobrevivo dessa atividade)
nós, romancistas, contistas, novelistas e autores de peças teatrais, se
fôssemos aquele personagem criado pelo italiano Carlo Collodi (pseudônimo de
Carlo Lorenzini), o Pinochio, boneco de madeira que falava e que, cada vez que
mentia, via seu nariz crescer, andaríamos, todos, com narigões enormes, a cada
história que concluíssemos. E, cá pra nós, que tremendo mentiroso que foi esse
ficcionista!
Querem mentira maior do que a que ele
inventou?! E, ainda por cima, inverossímil! Ora, vejam só, um carpinteiro
(chamado Gepeto) constrói um boneco de madeira que, além de falar, anda e se
comporta como um menino de carne e osso. Mais do que isso, tem um grilo falante
por consciência. E sempre que mente, todos percebem que mentiu, já que seu
nariz cresce.
Finalmente, cúmulo dos cúmulos, o
desengonçado boneco, por intervenção de uma fada (vejam só!), transforma-se num
ser humano! Vá ser mentiroso na... Deixa pra lá! Mas, deixando de ironias, cá
pra nós: que tremendo sujeito criativo foi esse Carlo Lorenzini (Collodi, como
preferia ser chamado)!!! Como se vê, tudo em sociedade é relativo.
Antes da invenção dos alfabetos, e,
portanto, da escrita, histórias (ou estórias, como preferem alguns) como esta
(e tantas outras) eram narradas por pessoas extremamente imaginativas, que
faziam enorme sucesso nas comunidades em que viviam. Suas invenções eram
repetidas, geração após geração, mas com um inconveniente: cada um que as
reproduzia, alterava algum detalhe, acrescentando ou tirando alguma coisa da
versão original. Após algum tempo, o enredo, cenários e personagens eram
completamente diferentes. E o verdadeiro inventor da mentira caía, de vez, no
esquecimento.
A palavra escrita, porém, conferiu
permanência a essas estórias. Preservou, acima de tudo, a autoria. Milhões e
milhões de livros são publicados, anualmente, mundo afora, para satisfazer a
insaciável curiosidade de bilhões de pessoas, ávidas por ficção. E os enredos,
cenários e situações são os mais variados possíveis. Heróis e vilões, musas e
prostitutas, países exóticos e planetas que só existem na imaginação de quem os
criou, desfilam por páginas e mais páginas sem fim.
Algumas dessas estórias ganham palcos e
telas e se popularizam de vez. Outras milhões delas (quiçá bilhões) permanecem
restritas a livros e revistas, nas mais diferentes línguas e nos mais variados
dialetos que as pessoas se utilizam para se expressar. Mas a grande maioria é
acessível, apenas, a quem se utiliza dos idiomas em que foram escritas.
Embora, muitas vezes, expressem grandes
verdades, essas histórias, rigorosamente, não passam do que são: ou seja,
mentiras. São meros frutos da imaginação de quem as inventou. Podem até ser
baseadas em fatos e personagens reais. Os cenários podem até existir e ser
rigorosamente descritos. Mas, no fundo, no fundo, não passam do que são:
ficção. Ou seja, mentira! Tenho, pois, ou não razão quando afirmo que tudo em
sociedade é relativo? Ora, ora, ora... claro que sim! Desminta-me, com fatos,
quem não concordar.
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas
(atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e
do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma
nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991
a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição
comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
As ficções citadas são as boas mentiras.
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